José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Remanescências de um país

Estrago da era Bolsonaro só cresce, com a graça da mídia e o horror mundial

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Dom Phillips e Bruno Pereira foram reduzidos a "remanescentes humanos". O ministro da Justiça assim noticiou pelo Twitter no começo da noite de quarta-feira (15): "remanescentes humanos" foram encontrados, e a Polícia Federal vai dar entrevista coletiva em Manaus. O ministro da Justiça é delegado e se expressa como tal. Elemento, evidência, empreendeu fuga, remanescentes. A fala é técnica, documental, mas sobretudo fria. O governo Bolsonaro é cruel na hora de cumprir o dever.

O bom jornalismo condena que veículos combinem versões, padronizem grandezas, mas a internet se arruma sozinha, empurrando termos e tons para uma linha média. Repare, quando uma notícia não começa igual em todos os sites, ela se ajustará até um suposto ideal com o passar do tempo. Concorrência, disputa por audiência, melhor ranqueamento no Google, toda aquela água de sempre leva a um único lugar. Os "remanescentes" de Anderson Torres prevaleceram na Folha e em boa parte da mídia. A objetividade jornalística também é cruel.

"Esse inglês era malvisto na região, porque fazia muita matéria contra garimpeiros, questão ambiental, então, naquela região lá, que é bastante isolada, muita gente não gostava dele", afirmou o presidente horas antes na mesma quarta-feira. Títulos na mídia e nas redes sociais focaram o "malvisto". Fosse para devolver a crueldade a Bolsonaro, deveriam ter ficado no "pouca coisa vai sobrar", outro trecho inacreditável da entrevista: "Aquela região, você pode ver, pelo que tudo indica, se mataram os dois, se mataram, espero que não, eles estão dentro d'água e dentro d'água pouca coisa vai sobrar, peixe come, não sei se tem piranha lá no Javari. A gente lamenta tudo isso aí".

Bolsonaro é tão grosseiro que os jornais não veem alternativa, é necessário registrar sua incontinência diuturnamente. Bravatas e barbaridades abrem espaço na mídia profissional, que, em legítimo esforço, expõe o que o presidente pensa. O problema é que não são poucos os que pensam como o presidente ou naturalizam o que ele pensa. Ou situam o que ele diz entre o tosco e o engraçado, não levam a sério. Aí, como segundo ato necessário, é preciso mostrar que a Terra é redonda, por mais óbvio que pareça, com consultas a especialistas, à Anistia, ao deputado, ao jurista.

Entre o registro do absurdo e a explicação de que é um absurdo, Bolsonaro fatura.

Um pedaço de carne está cortado em 6 pedaços e seu formato lembra o mapa do Brasil. Ele está em cima de uma tábua de carne bege e há sangue ao lado da carne. O fundo é branco.
Carvall

"Os indícios levam a crer que fizeram alguma maldade com eles, porque já foram encontrados boiando no rio vísceras humanas que já estão em Brasília para fazer DNA." Bolsonaro, desde segunda-feira (13), trabalhava em modo C.S.I., que atrai a atenção no discurso e afasta a questão da responsabilidade por "alguma maldade". A culpa é dos deuses bandidos da floresta.

"Maldade" também é o que a Petrobras está fazendo com o povo ao aumentar o preço dos combustíveis, declarou ele na quinta-feira (16). Maldade, os algoritmos já devem ter notado, é qualquer coisa que aconteça devido à incúria do governo do qual o presidente, pelo menos em seu discurso, simplesmente não faz parte.

A diferença, na última semana, é que essas e outras frases do mandatário brasileiro ganharam o mundo e traduções em outras línguas. A "bad reputation" atribuída a Phillips por Bolsonaro vai custar caro. Não ao presidente, que há tempos habita a classe dos párias, mas ao país. Ou ao que sobrar dele depois de outubro.

Tragédia anunciada

O noticiário em torno da morte de Dom e Bruno flutuou consideravelmente na semana que passou entre os principais órgãos de imprensa. Na segunda-feira (13), com informação proveniente da família do jornalista, Globonews e The Guardian deram que os corpos tinham sido encontrados. A Polícia Federal acabou negando a informação, passada aos parentes de Phillips pela embaixada brasileira em Londres. Folha e Estado de S.Paulo não entraram na história. Na terça-feira (14), após cobrança pública dos familiares, a embaixada pediu desculpas.

Na quarta-feira (15), quando todos já noticiavam que um dos presos era levado para a área de buscas, no meio do dia, Globo e G1 anunciaram que o crime havia sido confessado. A notícia logo chegou a O Globo e ao UOL, com novos detalhes. Folha e Estadão, outra vez, não embarcaram.

A coisa ficou ainda mais esquisita à noite, quando o Jornal Nacional entrou no ar sem mencionar as informações apuradas pelos veículos da casa. A prudência dos paulistas parecia fazer sentido. O programa aguardou em vão a entrevista que autoridades dariam em Manaus sobre o caso. A coletiva só veio com a novela começada, mas com a confirmação da tragédia e o constrangimento de não haver indígenas na sala, ausência questionada na primeira pergunta, feita pela BBC. Folha e Estadão apenas então alcançaram a triste linha média.

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