José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Intestinos de uma nação

Enquanto o país se degenera nas redes sociais, Folha pasteuriza a democracia

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Certas observações precisam ser feitas a partir de uma perspectiva exterior. Requerem desprendimento. É isso o que explica o jornal The New York Times ter sido o primeiro a descrever a decisão do TSE de dar amplos poderes a Alexandre de Moraes como "uma das mais agressivas ações adotadas por qualquer país para combater informação falsa".

O ministro, como amplamente divulgado, pode agora agir de ofício, sem ser provocado, derrubando conteúdo que considere inverídico. As redes sociais ficam obrigadas a obedecer em prazo de horas, sob pena de multas pesadas e até suspensão. O correspondente do jornal americano resumiu bem o ambiente eleitoral que acompanha, inundado por ataques e "acusações de que os candidatos são satanistas, canibais e pedófilos".

Não há motivo para vergonha, pois reproduzimos e ou antecipamos o que ocorre no resto do mundo desde que a mídia digital se tornou preponderante no planeta.

Quem acompanha o noticiário também sabe há tempos que o impacto de tudo isso nas eleições é brutal, como Folha e Patrícia Campos Mello revelaram em 2018. O impulsionamento irregular de conteúdo, igual ao feito contra o candidato do PT há quatro anos, bancado por bolsonaristas, foi coibido desta vez pela corte eleitoral, mas o saco de maldades é sem fundo. A legislação não acompanha a tecnologia, assim como muitos legisladores sentam em cima de medidas de p­revenção, pouco interessados em deter a lama. A mídia não avança mais rápido.

Na última semana, o jornal mostrou que o Facebook não retirou do ar 39% das postagens consideradas desinformação por checadores. A conclusão é de um estudo da UFRJ, que pegou como amostra 95 links denunciados por usuários ao TSE. Sim, é praticamente um aquário, mas dá uma medida, ainda que tímida, do que deve estar ocorrendo no oceano. Até mentira básica continua no ar, como uma reportagem da Jovem Pan, compartilhada pela deputada Carla Zambelli, que alega uma fantasiosa propensão das urnas eletrônicas a ataques hackers. "Colaboramos com as autoridades" é o outro lado da Meta.

Ilustração mostra seis quadrados, dispostos em duas linhas, com 3 em cada. Eles têm o fundo marrom e um ícone de uma rede social em cada (LinkedIn, WhatsApp, Twitter, Facebook e Instagram). No útlimo da primeira linha, está um emoji de cocô.
Carvall

A imprensa, por sua vez, denuncia a censura ou discute os limites da liberdade de expressão, a depender do calo que se aperta. A mesma Jovem Pan está obrigada a veicular direitos de resposta de Luiz Inácio Lula da Silva por tê-lo chamado de ladrão, descondenado e outros adjetivos. A emissora, na qual é quase impossível discernir informação de opinião, se diz alvo de censura prévia.

Em editorial, a Folha, depois de afirmar que fake news desafiam a própria democracia, defende que "a esfera civil do debate público" possui mecanismos para combatê-las. "Jornais apontam erros e falácias, bem como expõem versões opostas. Candidatos têm espaço para responder ataques dos adversários." Voltando à metáfora do aquário, é necessário reconhecer que o jornalismo está mais para barquinho de papel, sendo que a escala do negócio é de porta-aviões.

Enquanto o país assiste pela tela do celular a um lado jogar pedra na Geni que vê no outro extremo, a Folha publica pesquisa que afere, "a dez dias das eleições presidenciais, que o apoio à democracia no Brasil atingiu 79%, o maior patamar da série histórica iniciada pelo Datafolha em 1989". O recorde anterior, 75%, fora registrado em agosto, quando Cartas para Democracia eram escritas diante do golpismo explícito de Jair Bolsonaro e seus aliados. À época, Maria Hermínia Tavares alertou que a constatação do levantamento não poderia ser tomada com muito otimismo. "Há sobre a mesa concepções rivais de democracia, não captadas pela pesquisa", escreveu a professora em sua coluna. Oscar Vilhena Vieira também analisou o paradoxo nesta última semana.

A turma que se veste de amarelo vê a eleição como uma autorização ilimitada, que não pode ser discutida. Democracia para eles é isso, não o que está nos manuais da ciência política. Será que 79% apoiam a democracia liberal, de eleições e imprensa livre e respeito às minorias, para ficar apenas em alguns dos alvos frequentes do atual presidente?

Em igual medida, a liberdade de expressão professada pelo bolsonarismo se afasta do escrutínio a que se submete o jornalismo profissional, que preza a acuidade e o equilíbrio das informações que veicula. Além da inimputabilidade, salvo-conduto para falácias e calúnias de toda sorte, o que importa é garantir a vala a céu aberto que carrega o pior esgoto, aquele que quanto mais impacto causa mais enriquece o mentiroso.

Censura é preocupação legítima de quem se curva à democracia e preserva a verdadeira liberdade de expressão. Quem não teme pela democracia nestes dias está apenas pensando na monetização. Vai piorar.

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