Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo
Descrição de chapéu

Do bloqueio à alegria, lembrança de Cuba me dá vontade de voltar

O cheiro de bom tabaco me seduzia, mesmo quando excessivo


Rua com casas coloridas e torre ao fundo
Rua de Havana, em Cuba - Pedro Szekely/ Flickr/ CreativeCommons

Ando querendo voltar a Cuba. Há tempos não vou para lá --duas décadas? Fico imaginando quanto pode ter mudado depois das aberturas de Obama (apesar dos novos recuos de Trump), relaxando o criminoso bloqueio americano instituído há décadas para estrangular a ilha.

Um bloqueio, aliás, marcado pela hipocrisia desde o primeiro momento. Foi assim: no dia 6 de fevereiro de 1962, o presidente John Kennedy ordenou a seu assessor de imprensa, Pierre Salinger, que comprasse imediatamente mil dos seus charutos cubanos favoritos.

Após uma noite desdobrando-se para cumprir a ordem, às oito da manhã seguinte Salinger estava na Casa Branca com 1.200 Petit Upmanns (uns charutinhos finos e meio sem graça, mas... eram ordens). Informado do fato, Kennedy assinou o decreto tornando produtos cubanos ilegais no país.

O bloqueio acirrou o nível de necessidades de um país já pobre. Ainda assim, quando lá estive, nos anos 1990, pude sentir quão vibrante é aquela terra e aquela gente.

Até nos edifícios menos preservados sentia brotar uma força histórica detrás dos velhos rebocos. Mesmo com a hotelaria capenga, o mar do Caribe era sedutor. E havia a atmosfera, com música no ar... A qualquer momento, alguém dava passinhos discretos sem nem perceber e, nas ruas, crianças se enlaçavam para bailar ao ar livre.

Se a comida era ruim, havia rum e charutos. O cheiro de bom tabaco me seduzia, mesmo quando excessivo (por exemplo, numa sala pequena sem janelas abertas, com seis pessoas, todas fumando).

Como qualquer ditadura me angustia, a alegria de constatar que todos eram alfabetizados, estudados, saudáveis e sorridentes se esvaía quando lia jornais sem notícias de verdade, ou via uma TV em que a única transmissão eram horas a fio de congresso do partido de Fidel.

Mas para desanuviar bastava correr até a famosa Bodeguita del Medio, meu bar favorito. Não era o mais confortável -perdia para o também mítico Floridita. Mas, na época, os melhores bares e restaurantes só podiam ser pagos em dólares (moeda proibida para os locais), portanto só eram frequentados por turistas ou pela privilegiada "nomenklatura" local. No Bodeguita, não: cubanos eram permitidos, um oásis para mim.

No balcão apreciava os barmen fazerem o mojito -a hierbabuena (tipo de hortelã) machucada com a ponta da colher bailarina (não com pilão), o xarope adicionado no lugar do açúcar em pó. Era tanto calor que eu, mesmo sem apreciar coquetéis diluídos, consumia litros.

Foi onde conheci um casal com quem fiz uma breve amizade -a ponto de ajudá-los a vencer barreiras que isolavam os cubanos do acesso a certos bens. Sei que o bloqueio criminoso dos Estados Unidos (chantageando outros países a fazerem o mesmo sob pena de retaliações econômicas) produzia dificuldades e distorções extremas. Mas ainda assim era doloroso ver, por exemplo, cubanos proibidos de entrar nas lojas onde os melhores produtos só eram vendidos em dólares.

Numa delas comprei um par de sapatos para o casamento da moça (a pedido do noivo). Convidei-os para almoçar no meu hotel (em cujo restaurante foram inicialmente barrados, até que eu intercedesse). E, na despedida, passeando numa praça, os presenteei com café brasileiro, o que os deixou em pânico: e se algum policial os visse recebendo um pacote de um estrangeiro?

Tenho a impressão de que muito deve ter mudado. Espero que haja um clima mais descontraído e menos discriminatório.

De toda forma, foi bom conhecer aquele tempo. Havia dificuldades econômicas, o cerco político externo, uma casta burocrática sufocando o país com mão de ferro. E, na outra ponta, um submundo de outsiders "desajustados" como o descrito nos livros seminais de Pedro Juan Gutiérrez. Mas ainda assim as crianças lindas, saudáveis, bailavam nas ruas. Dá até vontade de ter fé na humanidade.

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