Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo
Descrição de chapéu

Até um simples molho de tomate já foi uma subversão para velhinhas napolitanas

Praguejar contra restaurantes de alta cozinha não deveria implicar em juízos de qualidade

Visão do centro da praça Luís de Camões em Lisboa. A praça tem o formato retangular e é rodeada de prédios baixos, de cerca de seis andares. Há uma estátua de Camões no centro dela. O chão é revestido de ladrilhos brancos e pretos
Praça Luís de Camões, no bairro do Chiado, em Lisboa, Portugal - Luca Galuzzi/Wikimedia Commons

Certa vez em Lisboa vi, andando na rua pelo delicioso (em que pesem as ladeiras) Chiado, que o teatro São Carlos exibiria, dali a pouco, a ópera "A Valquíria", da tetralogia "O Anel do Nibelungo", do alemão Richard Wagner (1813-1883). Não resisti e entrei.

Caí num labirinto de prazeres e mazelas. Excitado pela oportunidade de assistir ao vivo àquela obra-prima, que começava lá pelas seis da tarde, não me dei conta de que no correr das (quase cinco!) horas da sessão, a fome marcaria sua inexorável presença.

Decorridas horas de lamúrias da valquíria, começou a ficar difícil a concentração. Os intervalos eram rápidos, umas moças passaram com tabuleiros de quitutes, e só. Tentei um sorvete para enganar a fome, mas foi difícil.

Enquanto Brunilda seguia para seu destino flamejante, meus primeiros delírios tinham imagens de guloseimas rápidas, deliciosos sanduíches portugueses. Mas logo foram substituídas (sonhar não custa) pela fantasia de pratos mais elaborados, da grande cozinha. Já me imaginava nas mesas dos tradicionais Tavares e Gambrinus ou do mais moderno Bica do Sapato.

Fazia sentido. Eu não estava num jogo de futebol, onde um sanduíche cai muito bem. Estava na ópera, e essa grande arte inspirava outra de igual majestade.

Isso talvez possa ser difícil de entender a quem pragueja contra restaurantes de alta cozinha (clássica ou vanguardista) e serviço elaborado –como se fossem opostos à (falsa) nostalgia da comida simples e displicente. Claro que há preferências pessoais, o que não deveria implicar em juízos de qualidade.

Já cansei de argumentar, para quem opõe a cozinha de vanguarda à cozinha clássica, que um simples molho de tomate já foi vanguardista em seu tempo.

Duzentos anos atrás os italianos ainda consideravam o tomate mera planta ornamental, até virar ingrediente em pratos de macarrão e pizzas. Para as velhinhas napolitanas, o molho de tomate era uma subversão. E era mesmo. Ainda bem.

(Posso imaginá-las conversando com as comadres, "que absurdo, agora usam tomate para fazer molho, só falta começarem a fazer comida com espuma!".)

Há novidades que são progressivas. Outras ideias parecem novas, mas no fim são passos atrás. Os dois movimentos andam juntos, toda ação provoca uma reação. Mesmo diante de uma ação progressista, pode ser útil a reação conservadora para chegar a um equilíbrio; mas sempre é chato ver os conservadores em ação.

Sou dos que apreciam a ópera e também o teatro dos grandes restaurantes com sua cozinha trabalhosa e seus serviços esmerados –cada qual tem seu momento, é claro. E gosto de imaginar como a grande arte influencia também a arte popular que virá depois.

Aliás, aqueles restaurantes populares deliciosos que admiro desde minha adolescência paulistana (e que reencontro muito parecidos em Portugal), onde se serve língua ao molho madeira e virado à paulista com garçons no velho estilo, trazendo a comida em travessas ovaladas de alumínio, empertigados em suas gravatas borboleta, têm um pé nos antigos restaurantes elegantes do século 19, com seus serviços à inglesa apoiados em guéridons (mesinhas laterais).

Estes substituíam o serviço familiar da estalagem por um teatro com cenário e personagens derivados dos palácios aristocráticos.

Será que a aristocracia parasitária de 200 anos atrás –cujos gestos inspiram os dos botecos e cantinas populares de hoje– era melhor do que a burguesia especuladora de hoje? Possivelmente era um tiquinho mais culta. Em seus casamentos colocavam orquestras tocando valsas, algumas de grandes compositores, e não bandas expelindo sertanejo universitário como faz a "elite" paulista hoje.

Mas algo há em comum entre os melhores restaurantes de ambas: eles procuram uma excelência de serviço, de comida, de bebida. Da mesma forma que um teatro de ópera, gênero que seduz uma microminoria, busca a excelência na tradição musical.

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