Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Festa em Bilbao deixa a lembrança de que as ruas são dos moradores

Já em São Paulo, querem proibir que se veja futebol na calçada

Maíra Melo/Folhapress

Escrevo a coluna em Bilbao, no País Basco, Espanha, onde estou imerso nas atividades em torno da cerimônia de entrega do que ficou conhecido como o Oscar mundial da gastronomia, o prêmio World’s 50 Best Restaurants.

Como nem tudo na vida é trabalho, tenho aproveitado também a sensacional comida da região. A de restaurantes premiados e refinados como o Etxebarri (cercado por vacas e cordeiros num vilarejo no campo), o Nerua, incrustado no museu Guggenheim (entre obras de Chagal e Ai Weiwei), ou o Azurmendi, dentro de uma linda vinícola do txacoli (o vinho típico da região); mas também a dos maravilhosos botecos de petiscos —que na Espanha (e cada vez mais no Brasil também) são chamados de tapas e, por aqui, de pintxos (palavra local para designar o palitinho que prende alguma iguaria ao pão).

Além de comer, tive a sorte de aportar aqui justo na comemoração dos 718 anos da cidade. Para celebrar, eles realizam a noche blanca, noite branca (neste ano, são duas seguidas).

Durante o evento, milhares de pessoas ficam nas ruas até de madrugada, com música, teatro, comida, com os principais prédios coloridos por projeções de luzes.

Foi ao final desta andança que voltei ao hotel e fiquei estarrecido com o que li na Folha: relatava meu colega Ivan Finotti que em São Paulo fora proibido assistir a jogos da Copa do Mundo na rua! Que para garantir a lei e a ordem as autoridades até mesmo obrigavam bares a colocar cortinas que escondessem aquele perigoso espetáculo dos olhares incautos. Que, assim, qualquer transeunte —fosse um morador de rua, fosse um colarinho branco— só poderia ver o pecaminoso balé daqueles homens de perna de fora e cabelos caprichosamente esculpidos se entrasse nos suspeitos estabelecimentos e, claro, pagasse algo.

Isso tudo naquele que já foi chamado o país do futebol... Eu deveria descrer da notícia. Proibir que se assista à Copa a céu aberto, no Brasil, só poderia ser mais uma fake news plantada diretamente do Twitter do Trump.

Mas acreditei piamente. Porque por mais bizarro que pareça, desde a eleição de um arremedo de Trump tupiniquim para prefeito, começaram a surgir em São Paulo notícias —terríveis, mas verdadeiras—que vão nessa mesma direção e, por isso, dão sentido a mais essa aberração.

Na São Paulo de hoje as autoridades vivem num esforço permanente para expulsar a população das suas próprias ruas. Um processo odioso de higienização —no caso, de esterilização urbana—, não dirigido especialmente a latinos ou imigrantes (como nos Estados Unidos), mas à população em geral. Já perceberam?

Querem tirar os artistas dos muros.

Tirar os ciclistas das ruas.

Colocar o Carnaval em avenidas grandes, cercadas e ermas.

Trancar a Virada Cultural num autódromo.

Transformar parque público em empresa privada.

E, agora, proibir que se veja futebol na calçada.

É verdade que muito do que vem sendo tentado e anunciado ainda não se efetivou, possivelmente devido ao protesto horrorizado de muitos paulistanos. Mas nada indica que a sanha higienista, de tornar a cidade linda varrendo para fora dela a população, tenha cessado.

Se conseguirem ir adiante, a rua que sobrará para os paulistanos será o asfalto manchado de sangue das marginais, onde a velocidade permitida aos carros voltou aos níveis criminosos condenados internacionalmente.

E, então, daqui desses dias de Europa, perambulando na noite fervilhante de Bilbao, me entristeço.

Lembro-me de que esta esfuziante noche blanca é como outras manifestações de confraternização urbana mundo afora. A fête de la musique de Paris. O dia da rainha em Amsterdã. As festas de rua na Ásia. E outros exemplos de confraternização pública que São Paulo também merece.

(Se o Brasil ganhar a Copa, onde os paulistanos poderão comemorar? Somente dentro dos muros do longínquo autódromo, talvez? Isso se Interlagos ainda não tiver sido vendido... e, claro, se os novos donos permitirem —a preços módicos, espero.)

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