Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Almoços exóticos eram dura prova para Otavio, mas aguçavam sua curiosidade

Se nos encontros São Paulo afora não discutíamos trabalho, de todo o resto se falava

Durante as últimas três décadas dediquei-me a uma modalidade de turismo curiosa —um giro pelos restaurantes de São Paulo, que eu escolhia com o objetivo de chocar o sensível e entediado paladar do meu acompanhante.

Ilustração de Maíra Mendes para Josimar Melo
Maíra Mendes

Pouco dado à maioria dos prazeres mundanos, a ele bastava um prato trivial que lhe fosse familiar, talvez acompanhado por um drinque que, sabe-se lá por que, o apetecia: o horse’s neck, com brandy.

Assim como dava pouco valor aos confortos materiais, tinha pavor dos sabores desconhecidos. O que contrastava brutalmente com sua enorme curiosidade diante das coisas.

Era ele que pagava meu salário nos tempos em que tive salário, e, depois disso, as colaborações fixas que tenho mantido ao longo dessas décadas. 

Era também quem pagava as contas de nossos almoços anuais, que às vezes eram até baratos e, às vezes, totalmente fora do meu orçamento.

Devia me considerar boa companhia ou bom papo, pois não hesitava em pagar para me permitir torturá-lo com sabores insanos no decorrer de nossos roteiros.

Das provas mais impiedosas foi a que aconteceu no El Tranvía, à época, no final dos anos 1990, uma diminuta parrilla uruguaia no final de uma vilazinha modesta, com pequenos comércios na entrada, em Santa Cecília, centro de São Paulo.

Conveniente, porque era perto do trabalho (ainda é, só que o restaurante cresceu, ocupou toda a vila). Mas perturbadora, porque da parrillada completa fazem parte assustadoras entranhas, que incluem tripas, intestinos, sangue e outros pavores bovinos.

Seu olhar desamparado, suas palavras balbuciadas como as de uma criança (“tenho mesmo que comer isto aqui?”), seu sorriso desajeitado abocanhando aqueles mistérios dissolviam-se em ar modestamente vitorioso após cada prova repetida quase todos os anos.

Ele quase desistiu, muitos anos depois, no bairro da Liberdade, onde então funcionava o restaurante Kinoshita. 

No velho endereço já oficiava o novo chef Tsuyoshi Murakami, que, segundo os rumores gastronômicos da cidade, surgia como uma nova sensação, com sua cozinha criativa de diversas influências.

A prova de fogo, naquele almoço, vinha numa taça de martíni, uma mistura de coisas cruas e gosmentas, como ostras e ovas e gema crua, que quase o levou ao desespero; mas entornou de uma só vez, como remédio, e sorriu feliz.

Não falávamos de trabalho. Para isso reservávamos os canais oficiais da empresa.

Como quando eu organizei, para uma matéria, um jantar que reproduzia aquele do filme “A Festa de Babette” (1987), convidando alguns amantes da boa mesa —como o filólogo Antonio Houaiss e a galerista Regina Boni.

Em sua sala, ele sugeriu que eu incluísse o economista Delfim Netto, segundo ele uma pessoa de ótimo papo. 

Respondi que o cidadão, quando tétrico ministro da ditadura militar, falsificava os índices de custo de vida, para com isso rebaixar o salário mínimo (que era então indexado pela inflação), condenando milhões de pessoas a comer menos, e que compartilhar a mesa com tal promotor da fome coletiva seria por demais indigesto.

Esperei que minha impulsiva petulância pudesse até me custar o emprego —mas sua resposta foi apenas de aceitar minha decisão. Simples assim.

Se nos almoços São Paulo afora não discutíamos trabalho, de todo o resto se falava. Literatura e mulheres, política e arte, eu sempre tentando fugir da sua metralhadora inquisitorial —ele perguntava de tudo sem parar, sempre mostrando genuíno interesse.

Era a mesma curiosidade que demonstrou em nosso primeiro almoço tanto tempo atrás, ao perguntar, cenho um pouco franzido, como era ter filhos (eu acabara de ter minha primeira filha, já meio pai temporão). Foi a primeira vez que enveredamos por uma conversa mais pessoal.

Que reapareceu em nosso último encontro, em que lhe impingi sushi de papada de porco e bacon com goiabada (mas também um reconfortante tutu de feijão) na Casa do Porco, no centro de São Paulo.

Ambos nos tornáramos pais há poucos anos —eu, de meu segundo filho, e ele, de sua primeira.

O assunto filhos retornava à mesa, inevitavelmente, quase 30 anos depois. Eu, já descolado, falando com desenvoltura sobre a renovada aventura. Ele, um velho principiante, que nesse momento perguntou menos e falou mais que o habitual. Pego de surpresa, deparei-me com seus olhos marejados enquanto me contava de sua filha Miranda.

Otavio Frias Filho e eu tínhamos posições políticas irreconciliáveis, mas ele era um daqueles pouquíssimos oponentes que tive prazer em cultivar. Para além da política, sobravam assuntos com interessantes outros conflitos para nos alimentar.

Pouco tempo atrás marcamos novo encontro. “Preciso ganhar peso, de forma que um de nossos almoços proximamente seria muito oportuno...”, ele escreveu com humor. 

Há cerca de dois meses me ligou desmarcando, pois iria para os Estados Unidos (aproveitou a ligação para elogiar longamente meu texto daquele dia, o que me envaideceu, pois era a avaliação de um intelectual refinado e exigente).

Não houve tempo para mais.

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