Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Da areia fria do litoral de SP brotou um capítulo do ensino da gastronomia

Ricardo Maranhão foi figura-chave para sistematizar um conhecimento que era disperso no país

Era um dia frio na praia Brava —uma das tantas com esse nome—, no litoral norte de São Paulo, 20 anos atrás. Um daqueles finais de ano em que milhares de brasileiros procuram um Réveillon de sol à beira-mar, mas encontram chuva e umidade.

Ilustração de Maíra mendes para a coluna de Josimar Melo (13 de setembro de 2018)
Maíra Mendes

Desci a trilha pela pequena escarpa que nos separava do mar e, já na areia, rala de pessoas naquela manhã cinzenta, reparei no despreocupado vulto, ombros para trás apoiados nos braços retos fincados no solo, as pernas abertas esticadas displicentemente em direção ao mar e ao céu que se uniam em tom metálico no horizonte.

Reconheci ali meu antigo professor de cursinho pré-vestibular dos anos 1970: o historiador Ricardo Maranhão, cuja morte no último dia 7, provocada por um câncer, aos 72 anos, me encheu de tristeza.

Da areia fria daquela manhã preguiçosa, quem diria, brotaria algo de novo no estudo da gastronomia no Brasil. Ao avistar o velho conhecido, que encontrara pouquíssimo desde as aulas no cursinho Equipe (e nas cachaças que às vezes compartilhávamos nos intervalos no boteco ao lado, pouco importava que ainda fossem dez horas da manhã), vislumbrei a solução para um problema que vinha me incomodando.

Ao longo do ano eu me envolvera, com as amigas Angela Freitas (então herdeira e vice-reitora da Universidade Anhembi Morumbi) e Rosa Moraes (que a instigava a lançar um inédito curso), no projeto de criar a primeira escola de gastronomia de nível superior no Brasil.

Aproximava-se o início de 1999, quando o curso finalmente estrearia. Foi quando elas me propuseram assumir a cadeira de história da gastronomia na nascente faculdade. O que me pareceu um disparate: eu brincava repetindo “desculpem-me por lembrá-las disso, mas... educação é coisa séria!... e eu sou apenas um jornalista, sem qualquer qualificação para o ensino!”.

Eu dizia a verdade. No entanto, queria continuar colaborando com a empreitada.

Foi quando, ainda hesitante, tropecei em Ricardo Maranhão. E sem muitas delongas, antes mesmo de atacarmos os pasteis da barraca da Palmira, fui perguntando: você já estudou alguma vez história da alimentação? Não especialmente, disse ele, mas ao estudar história da energia em São Paulo me interessei bastante pelo assunto. Você teria tempo para se dedicar a isso, e gostaria? Ora, estou me aposentando neste ano da minha cadeira na Unicamp, terei sim tempo disponível; e interesse por gastronomia, quem não tem?

Ricardo Maranhão lê livro
O professor Ricardo Maranhão, morto aos 72 anos, no dia 7 de setembro, - Karime Xavier - 9.ago.14/Folhapress

Estava resolvido meu problema —e o da universidade: teríamos então um professor de verdade, com longa experiência no magistério, livros publicados e todas as titulações necessárias para dar seriedade e peso à nascente cadeira de história da gastronomia.

E eu seguiria colaborando, com palestras complementares no curso —sou capaz de dar ótimas palestras, dizem, mas certamente seria um desastre como titular de uma cadeira de ensino; a convivência com meu novo colega, um craque na sala de aula e fora dela, me convenceu ainda mais disso.

Foi bem mais do que a solução imediata para um problema meu e da escola. Maranhão passou a dedicar-se com afinco à nova especialidade e, ao longo dos últimos 20 anos, tornou-se figura chave para sistematizar um conhecimento que no Brasil era disperso.

Dirigiu o Centro de Pesquisas em Gastronomia Brasileira que criou na universidade, produziu livros sobre o tema (com sua capacidade de dessacralizar e popularizar o conhecimento) e sobretudo estimulou nas jovens gerações o interesse e o gosto por este aspecto tão visceral da história humana, a gastronomia.

Engraçado, estabanado, progressista e horrorizado pelas tristes formas em que os anseios populares teimam em ser soterrados, ele estava sempre fervilhando novos projetos, alguns dos quais compartilhamos, no sucesso ou no fracasso. (O último mal sucedido foi um curso de ensino a distância de história da gastronomia, que ainda tenho aqui, elaborado de fio a pavio, mas que não saiu do papel.)

Mas a melhor parte eram nossos encontros, infelizmente rarefeitos ultimamente. Eram em geral almoços, como o último deles num boteco suspeitíssimo que eu sugeri na avenida Santo Amaro, onde tinha visto uma placa que anunciava acepipes nordestinos. Eram sempre regados a doses despudorados de cachaça, como nas festivas manhãs dos tempos de cursinho. 

 

O chef José Hugo Celidônio no programa "Mais Você" em 2016
O chef José Hugo Celidônio - Reprodução/Globo

Por falar em balneários, e sendo o Rio de Janeiro o mais completo deles, é triste também lembrar que José Hugo Celidônio, o paulista mais carioca que jamais conheci, também se foi (dia 2). Seu último suspiro foi num lugar adequado à sua história —a boa pizzaria Ella, no Jardim Botânico.

Zé Hugo, que um dia me honrou com o convite para prefaciar um de seus livros, foi o primeiro brasileiro que, fazendeiro e jet-setter, típico frequentador de mesas elegantes, não se acanhou em pular desde os anos 1980 para o outro lado do balcão, vestir roupa de cozinheiro, servir produtos brasileiros e se tornar serviçal da clientela. 

Deu, com seu próprio exemplo, um upgrade na posição do chef no Brasil.

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