Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Queijo feito sob sol de Pernambuco mostra a terra, a história e o homem

Produto artesanal saído do tacho de cobre em Cachoeirinha é o mais suave e cremoso que já provei

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Rodrigo Yokota

Em minhas viagens ao Nordeste do Brasil, uma das iguarias que me encantam é o queijo. 

Um deles é o queijo coalho, mais firme, ecumênico e onipresente em todas as casas desde o horário do desjejum. Mas, especialmente, uma outra variante, igualmente de leite de vaca, igualmente produto do interior, e que tem em Pernambuco um de seus templos: o queijo manteiga, mais cremoso, mais doce, quase um requeijão firme —mas dócil.

Com toda esta minha adoração pelo produto, até hoje nunca tinha presenciado sua produção. Até uma viagem recente à região de Cachoeirinha, no interior pernambucano, já no agreste do estado, uma região do semiárido que em tese ainda se beneficia de chuvas. Mas que, no momento, vem de uma longa estiagem de sete anos (ligeiramente esmorecida nos últimos dois), sem que, no entanto, tenha cessado a labuta dos moradores da região.

Na pequena Cachoeirinha, famosa pelas festas juninas, mal se encontra um hotel para uma noite desassombrada numa cama confortável longe do calor. Mas, além da festa do padroeiro Santo Antônio, a cidade é conhecida para muito além de suas fronteiras como a “capital do couro e do aço” —as matérias-primas dos arreios e outras peças para uso em montaria, manufaturados artesanalmente e orgulhosamente exibidos em lojas (e numa exposição anual).

Mas saco vazio, ainda que do mais nobre couro e esteado pelo mais retinto aço, não para em pé. Eis que para isso a longínqua Cachoeirinha também tem remédio: ocorre que é também conhecida pela fama de sua carne de sol e pelos seus queijos coalho e manteiga. A tal ponto de sediar duas famosas feiras, uma de gado (alegadamente a segunda maior de Pernambuco), e outra dedicada aos queijos.

E aqui me atenho finalmente ao que me encanta, o produto lácteo do gado que bravamente resiste —há séculos, por sinal— à inclemência do tempo.

Quem se lambuza da famosa cartola (acepipe de banana, canela, açúcar e queijo manteiga) do centenário restaurante Leite, do Recife, possivelmente não faz ideia da pequena saga que envolve o nascimento do ingrediente mais nobre dessa antiga sobremesa.

Disputando o título de ser seu melhor produtor, Cachoeirinha tem ao seu redor pequenas queijarias artesanais familiares, que se abastecem do leite fornecido por sitiantes locais. Para chegar a qualquer um deles, é preciso atravessar caminhos de poeira que filtram o sol em improváveis prismas.

O leite vem de gado que mistura as raças gir e holandesa, em muitos casos de propriedades que já tiveram mais que o dobro do plantel, agora reduzido a uma dúzia de cabeças sobreviventes da seca.

O queijo é feito em pequenas casas de alvenaria e madeira, em cujo canto jaz enorme tacho de cobre mantido em temperatura tépida pela lenha que arde debaixo dele mas numa fresta do lado de fora.

É sobre ele que se debruça, com uma enorme pá na mão, o sertanejo que, num jornal esclarecido como este, chamaríamos de “mestre queijeiro”, mas que ali é mais facilmente identificado apenas como um cabra arretado com uma sensibilidade da porra para o ponto do queijo.

Como é o caso do Bola, que, numa terra herdada pelo seu pai de um antigo patrão, produziu e ali mesmo nos vendeu, praticamente saído do tacho (foi preciso um dia de descanso), o mais cremoso, suave, leitoso e emocionante queijo manteiga da minha vida.

A indústria de alimentos no Brasil teme, quase inexplicavelmente (só que não), a vida que explode desses produtos artesanais com sabor da terra, da história e de cada homem. 

Para não dizer que é uma mácula exclusivamente pátria, sempre é bom lembrar que na constituição da Comunidade Europeia a união de burocratas com a grande indústria tentou também (no final, sem sucesso) estrangular os produtos artesanais (como embutidos, queijos, vinhos) que teimassem em usar leite cru, carnes locais e outros procedimentos que fugissem ao controle padronizador e esterilizante.

Entre nós a grande indústria usa muitas armas —de lobbies em Brasília a publicidade e até jornalistas— para taxar produtos artesanais como farsantes ou, pior, portadores de venenos e coliformes.

Seria bom que um dia pudessem se despir de seus interesses econômicos, pegassem a estrada do agreste, entre palmas e mandacarus, e vissem o Bola, no calor extenuante de seu canto humilde e limpo, contraindo os músculos sobre a pasta de queijo irrigada de manteiga para criar no tacho de feiticeiro sua magia.

Ou nem isso: que, nos seus gabinetes de ar refrigerado, pusessem na boca um naco daquele queijo manteiga e sentissem sua doce e láctea cremosidade. Quem sabe despertaria o que neles talvez resta de humanidade.

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