É curioso pensar —já que é tão raro reparar— que os locais por onde passamos têm, entre tantas características, uma brisa especial.
Os ventos variam de momento a momento, têm suas vicissitudes a cada mês ou a cada estação, mas quem liga?
Talvez não o passante. Mas a história às vezes liga quase tanto quanto as tábuas meteorológicas, e cria tradições.
Ano passado, açoitado por uma brisa que se intensificou, bem mais nervosa e inesperada do que eu imaginava, à beira do mar em Pernambuco, eu, na vergonhosa ignorância sobre a cidade em que nasci (mas nunca vivi, se isso me penitencia), ouvi o comentário esclarecido do amigo e cineasta Paulo Caldas, codiretor do surpreendente “Baile Perfumado”, que, ao contrário de mim, ali não nasceu, mas viveu: “São os ventos de agosto”, sentenciou na franja do mar de Boa Viagem, onde rodávamos uma sequência da série “Comida é Arte”, que estreia em março.
Um velho conhecido dos recifences, ao que parece. Um ano antes o “Diário de Pernambuco”, com a autoridade de mais antigo periódico na ativa da América Latina, sentenciava numa chamada a periculosidade do momento: “Agosto: época de ventos fortes e de alerta para acidentes com pipas”.
Sim, pois tais ventos sul-sudeste decretam a temporada de empinar pipas, dizia a Companhia Energética de Pernambuco, por isso agosto é tempo de alerta sobre os riscos de acidentes com a rede elétrica.
Ventos que, aliás, batizariam um filme do também pernambucano Gabriel Mascaro (mais conhecido por “Boi Néon”). Em “Ventos de Agosto” (2014), veja só, o personagem é do ramo, um pesquisador de som de ventos alísios.
Foi também no cinema, e não em minha passagem por Havana, que ouvi sobre os ventos que sopram no Caribe, na versão para a tela de “Ventos de Quaresma”, parte do quarteto de livros “Estações Havana”, de Leonardo Padura.
São livros policiais, onde o personagem, o detetive Mario Conde, dessa vez tenta desvendar um crime durante a primavera, época em que, nos dias que antecedem a Semana Santa, chegam do sul ventos fortes, constantes e quentes, prenunciando a Quaresma.
Fenômeno tão típico, aprendi, que nem mesmo o jornal do governo, habituado a falsear a realidade de acordo com a biruta oficial, é capaz de ocultar.
Foi no Granma de abril passado que li o alerta da Guarda Costeira para os perigos dos “vientos de cuaresma”, “ventos quentes e fortes do sul que sopram entre finais de março e abril”, motivo para dar instruções detalhadas aos navegantes com o objetivo de “evitar fatos que possam por em perigo a vida humana no mar”.
São mais tranquilas minhas lembranças de outro vento, o mistral, que saindo do sopé dos Alpes me soprou o corpo numa temporada muitos anos atrás no sul da França.
Instalados numa casa que alugamos em L’Isle-sur-la-Sorgue, na Provença, não muito longe de Avignon, passávamos as tardes —Sofia, eu e nossos filhos, mais as queridas Mari e família e Maria Helena— debaixo de um caramanchão preguiçoso que abrigava a churrasqueira do jardim.
Os menores brincando com os coelhos do vizinho ao lado da piscina; os maiores se inundando de vinho rosé enquanto viravam sobre a brasa o cordeiro comprado no mercado de rua de Aix-en-Provence. Todos aguardavam o entardecer, quando o canto das cigarras ondulava na atmosfera ao sabor do sibilante ataque do mistral. O menu variava; as cigarras e o mistral —e o rosé— eram imutáveis.
Tanta evocação eólica nasceu ao lembrar dos “Ventos de Agosto”, de Mascaro, mas só porque li na Folha sobre a exibição de seu novo filme, “Divino Amor”, esta semana no festival de Sundance (EUA).
Ele narra, numa trágica pegada visionária, a distopia de um Brasil tomado por crentes evangélicos no poder.
Um pesadelo que agora se torna mais real do que merecíamos, com a eleição para presidente do Messias que corteja milícias assassinas. Que bons ventos —furiosos e cauterizadores— o levem para bem longe. É o mínimo que podemos desejar para o Brasil.
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