Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

A permanência do tempo

Eternidade de Cáceres, na Espanha, é antídoto ao fugaz ataque de stalker bolsominion

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Semana passada estava na Espanha quando foi ao ar o programa Roda Viva com o chef Jefferson Rueda, do restaurante A Casa do Porco.

Viajava pela Extremadura enquanto, na TV e na web, fazia ao chef perguntas que achava pertinentes. Nem todas cômodas (não é para isso o jornalismo). Uma, em especial, inflamou o ódio bolsominion. Eu recordei que, nos EUA, há restaurantes que enxotam membros do governo Trump que instituíram a política desumana de separar crianças de seus pais imigrantes em campos de concentração.

E perguntei como, na opinião do nosso chef, deveria reagir aqui um restaurateur se recebesse um neofascista do governo que defende atos de lesa-humanidade como tortura, assassinato político, massacre de minorias, milicianos.

Maíra Mendes

Bolsominions e seus robôs ficaram histéricos. Eu uso ao mínimo as tais redes sociais, mas numa delas encontrei uma curiosa fanática me destratando.

Como os outros, ela mostrou que me odeia. E, num comportamento doentio, ela me segue (ou persegue). Até deu-se ao trabalho de escrever dois comentários me destratando em poucos minutos. 

Não respondi, claro. Sei distinguir pessoas simples que inadvertidamente votaram num fascista sem se dar conta (são milhões, e valem a conversa) das pessoas informadas que sabem o que fizeram, reles fascistas saindo do armário.

Mas algo no regurgito autoritário da mulher chamou minha atenção: como uma aplicada stalker, ela não só me segue na internet como me observa na rua, chegando a engraçadíssimo veredito quanto à ação do tempo: “a vida está cruel” comigo, ela diz, e “deve ser por puro merecimento” deste “comunista” e “palhaço”.

Curioso ler esta ofensa em Cáceres, onde o passar do tempo está escancarado. A linda cidade, de construções seculares, é mais do que um ímã para quem ama história ou cenário do “Game of Thrones”: é patrimônio cultural da humanidade, com registros romanos, mas principalmente uma arquitetura medieval e renascentista de tirar o fôlego.

Entendo minha detratora estranhar minha figura. Deve ser bizarro para uma mente careta ver alguém da minha idade perambular com uma mochila cheia de mantimentos nas costas, em vez de fazer compras de carro. Cadê o asilo que não recolhe esse doido?

Mais chocante ainda, para uma retrógrada bolsominion, ver-me correndo ao lado da patinete do meu filhinho. Meu Jesus da goiabeira, um pai solteiro, e nessa idade! Damares, onde está você que não abate esse pecador imoral?

Era dia de escalar as ladeiras no casco histórico de Cáceres e visitar a Casa Carvajal, palácio do final do século 15 em cujo pátio uma exposição de fotos afetuosas retrata... o amor lésbico. Num espaço administrado pelo estado.

Oh céus, onde estão Doria, Crivella, a Câmara de Porto Alegre, os ministros (realmente medievais) da área cultural para aplicar com mão de ferro a censura da era bolsonarista e repreender o rei da Espanha por essa sem-vergonhice?

Talvez não dê para salvar a Espanha dessa praga de democracia —eles já tiveram sua dolorosa dose de fascismo. Mas nada me impediu de, inalando aquela atmosfera milenar, fechar os olhos e, imitando minha stalker, brincar de xeretar e especular sobre a vida alheia.

Imaginei-me vigiando as ruelas de Cáceres observando o guia Arturo, arqueólogo que vem dos arrabaldes em seu carro azul e expõe a história da região numa língua que, ao contrário da contrafação popularizada no Brasil, é o verdadeiro portunhol: mistura do seu castelhano natal com o vizinho português lusitano.

Como seria sua vida em casa, cozinhando para a mulher advogada e os filhos? Como seria espalhar simpatia, paciência e conhecimento repetindo as informações todo dia para japoneses, alemães, brasileiros?

Poderia me imaginar perseguindo como stalker as duas Maria Jesus que conheci. Uma, esbanjando gorda alegria com roupas coloridas enquanto escalava torre acima a minúscula praça Maior de San Martín de Trevejo. Seria em casa tão divertida quanto no trabalho? Tomaria uma talagada da zurrapa local ao fim de mais um dia de sobe e desce nas rígidas ladeiras da Extremadura?

E como seria, sem suspeitar que estava sendo espreitada, sua homônima diretora do museu Fundación Helga de Alvear, que com uma magreza ágil, olhar arguto e um português lusitano quase sem sotaque apresenta a exposição inspirada no minimalismo? Ali estão obras de Anish Kapoor, Yayoi Kusama, Sol LeWitt e dois brasileiros —telas em caneta de Iran do Espírito Santo e uma singela telinha de efeito tridimensional de Lygia Clark. Como seria sua rotina longe daquele acervo?

Tanto a ver em Cáceres, enquanto a mente devaneava com as ofensas da bolsominion... Mas foi um dia que pelo menos uma conclusão impôs. Sim, o tempo pode ter sido inclemente com meu corpo, como afirma minha stalker, assim como foi cruel com os parcos neurônios dela. Mas o tempo tem sido generoso com a bela Cáceres.

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