Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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A ótima comida de rua de Singapura foi confinada em cercadinhos

Cozinheiros que um dia estiveram a céu aberto trabalham agora em 'praças de alimentação'

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Num bate-papo recente em São Paulo caiu na mesa o assunto da comida em Singapura. Estive lá neste ano e procurei aproveitar de tudo um pouco. Hospedado num marco da cidade-estado da Malásia, o hotel Marina Bay Sands, podia apreciar, de seu terraço suspenso sobre três torres a 57 andares de altura, a moderna paisagem urbana onde a gastronomia local marca presença.

E o que vi, o que provei? De um lado, a manifestação comum a sociedades ricas: a existência de restaurantes de alto padrão, com ingredientes da melhor qualidade, tocados por chefs altamente tarimbados.

De outro, a comida das barracas de rua, mas que, para minha decepção, não são mais servidas na rua, e sim em galpões muito organizados, espécies de praças de alimentação onde hoje trabalham os cozinheiros populares que um dia estiveram a céu aberto.

Como exemplo da vertente mais sofisticada, estive no Jaan, na cobertura do hotel Swissôtel, da qual, numa altura equivalente, se avista o edifício do Marina Bay Sands.

No Jaan, o chef Kirk Westaway serve uma cozinha inesperada para a região: ela é inspirada nas tradições inglesas, modernizadas, mas cheias de referências britânicas.

Um prato está com uma parte cheia de comida, como um prato normal, e o restante está vazio com pequenos quadrados com comida. Cinco mãos apontam a parte dos quadrados de comida posicionados radialmente em volta desta parte do prato.
Maíra Mendes/Folhapress

Também entre os luminares locais estão aqueles associados à cozinha asiática, como o Esora, de tradicional cozinha japonesa servida pelo chef Shigeru Koizumi. E o Corner House, incrustado no Jardim Botânico, com seus pratos contemporâneos com forte presença de vegetais e produtos locais, sob os auspícios do chef Jason Tan.

Mas eu tinha a expectativa de conhecer também a cozinha de rua que ganhou ainda mais fama quando em 2016, pela primeira vez na história do conservador Guia Michelin, este concedeu uma estrela a dois vendedores ambulantes. 

Um dos premiados, o Hong Kong Soya Sauce Chicken Rice & Noodle (agora rebatizado como Hawker Chan), é especializado naquilo que seu nome anuncia: frango refogado com molho de soja, acompanhado por arroz ou massa fina, servido pelo cozinheiro Chan Hon Meng por menos de US$ 2.

Só que Chan, de 54 anos, há quase 40 na função, não é mais um vendedor de rua —porque eles não existem mais. Continuam sendo chamados de ambulantes, como no século 18, mas desde os anos 1970 começaram a ser removidos das ruas e centralizados nesses galpões.

O mesmo aconteceu com o outro estrelado Michelin, num centro afastado dali, o Hill Street Tai Hwa Pork Noodle, de porco moído com massa (vendido pelo dobro do preço do Hawker Chan, ainda assim baratíssimo), herdado e tocado desde os anos 1960 por Tang Chay Seng, 73.

Na conversa que abriu esta coluna, observei meu incômodo com o fato de que o movimento da comida de rua tenha sido enquadrado de forma tão severa pelas autoridades. Isso reflete minha alergia a regimes autocráticos (como o de Singapura), onde dirigentes decidem, sem consulta e sem apelação, o que é “melhor” para o povo. Quando isso atinge a comida, então, mais razão ainda para atiçar minha antipatia.

Fui contestado por alguém na mesa, que argumentou que o sistema atual garante mais higiene e segurança alimentar para o público do que provavelmente o que imperava antes.
No que eu devo concordar. Pois também comi maravilhosamente, e sempre sem receios, em outros centros, em bancas como A Noodle Story. Esta é tocada por jovens chefs, e seu prato famoso é o wonton mee, com pastel no vapor à moda de Cantão, macarrão chinês artesanal, barriga de porco cozida, ovo no shoyu e camarão em massa crocante de batata —já beirando os US$ 9.

Acontece que neste ano mesmo estive na Tailândia, e em Bancoc ainda sobrevive a tradição da comida de rua servida... na rua. Meu companheiro de mesa pergunta se a higiene não seria menor ali. É possível, embora seja também possível criar fiscalização, dar licenças para ambulantes sem necessariamente deslocá-los para cercadinhos institucionais.

Tenho a impressão de que, nas ruas onde nasceram, os ambulantes e suas bancas que não tiverem comida boa e saudável serão punidos pelo público, que fará filas na banca do lado. Com todos os riscos que eu possa correr (inclusive o de estar errado nessa questão delicada), prefiro arriscar na espontaneidade e na liberdade.

Pode ser apenas minha implicância contra as tiranias, cuja existência —quer sejam chinesas, sauditas, filipinas, ou de qualquer origem— sempre me incomoda numa viagem. Como, aliás, o hálito acre de seus latentes bafejos anda nos impregnando por aqui; só que aqui não estou de passagem.

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