Um guarda cabeludo que em outro lugar poderia ser preso pela aparência desleixada. Vitrines onde mulheres exibem seus corpos, à venda, protegidas do frio e da violência. Cafés onde maconha é consumida em várias versões, dentro da lei. Ruas onde quem manda são as bicicletas, não os carros.
São flashes que me vêm à cabeça a cada vez que embarco para Amsterdã, como aconteceu semana passada.
Foi uma passagem rápida. Fui conhecer uma iniciativa lançada por um grupo de chefs chamada Low Food.
É mais uma tentativa de cozinheiros se organizarem, junto com produtores e pesquisadores, para dar forma ao movimento, hoje generalizado, de aproveitar de forma sustentável e criativa os recursos locais.(Holanda, Netherlands ou Países Baixos, em inglês, seria Low Lands, daí a inspiração para o nome do movimento, que ainda remete a uma brava organização, a Slow Food.)
De quebra, a convite da companhia aérea KLM, que cedeu as passagens aos jornalistas, conheci o novo e espetacular lounge que a empresa, na celebração de seus cem anos, inaugurou no aeroporto de Schiphol; e, no incontornável Rijksmuseum, visitei o restaurante Rijks, um dos melhores do país, do chef Joris Bijdendijk, um dos articuladores do Low Food.
Tanta coisa para fazer em tão poucos dias, mas ainda assim a primeira coisa que me atingiu, como nas outras visitas, foi algo que parece uma inspiradora atmosfera libertária, que identifico por todo canto onde pouso a vista. Como os exemplos do início.
Existe uma alegria de viver, um misto de criatividade e relaxamento, que parece até absurdo quando nos damos conta de outro traço distintivo de Amsterdã: a cidade vive à beira da morte. Situada abaixo do nível do mar, com o oceano contido por diques, basta um acidente num deles para que uma inundação catastrófica destrua a cidade.
As duas coisas —o ar libertário e a vizinhança com a tragédia— me remetem a outra cidade que admiro: San Francisco, na costa oeste americana
Num país tão careta, de costumes antiquados tão arraigados, San Francisco é um oásis.
Desde minha primeira visita, fiquei encantado não somente por sua charmosa beleza, mas também pela efervescência cultural, por seu atrevimento que a levou a abraçar os movimentos de contracultura, de contestação política, de afirmação gay, de alegria hippie.
E, no entanto, como Amsterdã, a cidade vive à beira do cataclismo. Mais precisamente, está pousada na falha de San Andreas, um acidente geológico que produz regularmente terremotos devastadores, deixando rastros de morte e destruição. Sem que nem por isso alguém arrede pé de lá.
Olhando as maravilhosas Amsterdã e San Francisco (devem haver outras que não percebi ainda), sempre me pergunto: será possível que um povo possa tirar da tragédia iminente uma alegria de viver? Um vigor inesperado e belo, no lugar do desespero que pareceria natural?
Será que a vizinhança do desastre termina, no lugar do pânico, impondo uma urgência de aproveitar a vida aqui e agora? É até possível.
Mas e se a tragédia não for natural, como nesses casos, mas humana, como a que enfrentamos agora no Brasil?
Em nosso país não há invasão do mar ou terremotos à vista. No entanto, vivemos uma situação trágica, motivada mais diretamente pela ação desumana de seres humanos.
O que era uma quadrilha de milicianos de quinta, que vivia de extorsão dos miseráveis dos bairros pobres do Rio e de pixulés arrancados de funcionários fantasmas e candidatos-laranjas, virou o governo.
Marginais da ralé, aplaudidos pelos cúmplices que os homenageavam nas Câmaras de vereadores e deputados, integram uma quadrilha fascista com enorme poder destruidor.
Agora, além de depenar dinheiro público como já faziam às migalhas, pilotam um processo de destruição de direitos trabalhistas e previdenciários de milhões, enquanto vão soterrando a dignidade civilizatória das conquistas democráticas em todas as áreas, da sobrevivência das minorias à educação e a cultura.
O que fazer diante dessa tragédia? No terremoto da ditadura militar imperava o medo, não a alegria de viver; mas, ainda assim, houve resistência política e ímpetos de criação artística fora do controle oficial.
Mas foram 21 anos. Parece tempo demais para que o país sobreviva à atual corrida para o passado. Serão preciso diques fortes para segurar este mar —de lama, de obscurantismo, de corrupção mesquinha, de violência criminosa— que passou a nos inundar.
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