Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Josimar Melo

Se oriente

Do século 19 ao 20, dois livros me falam ao acaso da paixão ocidental pelo leste

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tive estes dias duas leituras que, por acaso, se dirigiram para um mesmo norte —o Leste. Falam ambas na atração exótica que o Oriente ainda hoje provoca do lado de cá do mundo, e que especialmente no século 19 chegou a ser uma febre no imaginário europeu.

O livro que estava me entretendo era “A Arte de Viajar”, do filósofo suíço (criado na Inglaterra) Alain de Botton. Ele aborda de forma criativa os deslocamentos pelo mundo, partindo de sua própria experiência, mas cotejando-a com a produção de importantes personagens culturais.

Fala de temas como a expectativa da viagem, a paisagem, o retorno; e mergulha em personagens como os escritores Charles Baudelaire e Gustave Flaubert, os pintores Vincent van Gogh e Edward Hopper e o naturalista e explorador Alexander von Humboldt.

São eles seus “guias” para a compreensão de lugares que visita, mas com uma conexão nada óbvia. Por exemplo, o capítulo que estava lendo, antes da coincidência de ter nas mãos outro livro (já falo dele), fala do exotismo que atrai a ânsia de viajantes por lugares diferentes.

Mas faz um curioso paralelo: em Amsterdã, já no aeroporto e depois pelas ruas, Botton sente estranhamento e ao mesmo tempo enorme atração. Só de ver uma placa no saguão de Schipol, onde desembarcara, ele observa que “apesar da sua simplicidade, e mesmo da banalidade, a placa me encanta, um encantamento para o qual o adjetivo ‘exótico’, ainda que inusitado, parece adequado”.

E começa sua viagem mental em torno do termo “exótico”, e como ele marcou uma era do sonho europeu. Ele nota que na primeira metade do século 19 a palavra tornou-se sinônimo de Oriente Médio, como no ciclo de poemas “Les Orientales” (As Orientais), publicado em 1829 por Victor Hugo.

Mas quem ele toma por guia é o escritor Gustave Flaubert (1821-1880). À época a imagem do Oriente, que influenciava também terrenos como a arquitetura e a moda, além da literatura, era bastante romantizada e estereotipada. Mas Flaubert, que desprezava a burguesia francesa em meio à qual se criava, fez mais do que apenas sonhar com outras paisagens e pessoas —foi além disso e se aventurou a conhecer seu objeto de desejo, em longa viagem entre 1849 e 1850, percorrendo Grécia, Egito, Líbano e Turquia.

[O que também fez outro artista, o pintor Delacroix (1798-1863), que em 1832 percorreu Espanha, Marrocos e Argélia e passou a retratar o Oriente Médio em várias telas.]

Alain de Botton mergulha menos na obra e mais na vida de Flaubert, pois é na sua correspondência e nos testemunhos de seus contemporâneos que estão as descrições mais vívidas de seu período nos países que visitou. E que fariam com que, até o fim da vida, retornasse em sonhos àquele ambiente das cidades, especialmente do Egito, que, comparadas à ordem burguesa da França, eram de um caos que o fascinava.

Estava eu nesta viagem quando, inesperadamente, caiu-me nas mãos outro livro: “A Ponte das Turquesas”, da arqueóloga e historiadora brasileira Fernanda de Camargo-Moro (1933-2016). Foi-me presenteado pela chef Ariana Lenti, dona do bufê Dasturca (mas também exímia cozinheira de comida baiana). Trata-se da história de uma das mais fascinantes cidades: Bizâncio, aliás Constantinopla, aliás Istambul. Um livro de história condimentado, porém, com receitas da cozinha turca.

Das quase 500 páginas que me capturaram imediatamente há uma introdução onde a autora revela seu orientalismo tardio (em relação àquele do século 19), brotado não obstante em sua longínqua infância.

O lindo texto relata o encontro, no final dos anos 1930, em Ipanema, com uma prima de seus pais que, casada com um diplomata francês, passava férias no Rio de Janeiro. Fala dela, ainda criança, impactada ao visitar a casa decorada com motivos orientais (pois prima e marido viviam, a trabalho, em Istambul).

No terraço havia uma tenda, almofadas com reflexos dourados e prateados, tapetes avermelhados, enormes bandejas cobertas de frutos secos, grandes bules de chá com bicos longos e retorcidos. E o perfume de incensos, criando uma atmosfera cuja lembrança nunca mais a abandonou.

A futura arqueóloga ligou-se para sempre àquela prima muito mais velha, cultivando uma longa amizade epistolar. Foi o começo de uma viagem interior que a levaria no futuro a desvendar, in loco, aquela região (a ponto de tornar-se uma estudiosa científica do lugar).

Como Flaubert ou Delacroix, Fernanda de Camargo-Moro foi picada pela curiosidade do Oriente. E, até mais do que aqueles dois, dedicou a ele a vida, e um lindo livro.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.