Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Nosso destino durante a pandemia é não ter destino de viagem algum

Frequentemente, até hoje, o termo destino nos remeteu à ideia de algo incontornável

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Já muitas vezes me peguei pensando, especialmente em longos trajetos, na razão pela qual chamamos de destino o local para onde viajamos.

Notei que a palavra, com esse sentido, é usada em vários idiomas, embora com variações (em inglês, usa-se mais a palavra "destination", enquanto o sentido ligado à fatalidade é "destiny" ou "fate").

Em português o termo pode ser aplicada a vários tipos de deslocamento. Um curto percurso de ônibus, uma longa viagem de avião cheia de escalas, um monótono cruzeiro marítimo, todos nos levam ao mesmo lugar —ao destino.

O destino?

Na história do pensamento humano, das correntes filosóficas até as crendices diversas (especialmente as religiosas), a maior parte do tempo essa palavra teve um sentido oposto ao de qualquer escolha —como a escolha do lugar para o qual desejamos viajar.

Frequentemente, até hoje, o termo destino nos remeteu à ideia de algo inelutável, incontornável. O destino está escrito, seja na Bíblia dos pastores evangélicos que entorpecem os pobres, seja nas estrelas que encantam astrólogos como o vigarista da Virgínia; a ninguém seria dado fugir a seu destino.

Por exemplo: como bem explicou o genocida que preside o Brasil, todo mundo morre, não dá para escapar. Sua hora vai chegar de todo modo, então saia à rua e confraternize, vá a festas e templos, tome remédios sem comprovação científica, porque dos sete palmos abaixo da terra você não escapa, ao fim e ao cabo.

Claro, o destino final é inevitável, mas sempre se pode ajudar. Ele mesmo, o genocida, numa de suas inúmeras asquerosas declarações, preconizou tempos atrás, bem antes da pandemia, ser preciso matar ao menos uns 30 mil brasileiros que pensam diferente dele, lamentando que a ditadura militar não o tenha feito.

Deve estar felicíssimo: com sua irresponsabilidade, sua falta de combate à pandemia, seu incentivo a que os fanáticos e desesperados se atirem no precipício, nosso arauto do apocalipse bateu a meta dos 30 mil com folga, colaborando para a morte, até agora, de mais de 45 mil pessoas —e subindo!

Mas à parte a ação de psicopatas de índole tirânica, de fato esse destino final um dia chegará: aquele do qual não se escapa e torna um oximoro a ideia de caminhar sem destino. O que é muito diferente da outra acepção do termo, o destino entendido como o ponto de chegada de uma viagem, que costuma ser um projeto, um objetivo, um sonho, mas que pode não ser alcançado.

Quando é atingido, especialmente no caso de turistas (mais que de viajantes de negócios), ainda assim a chegada ao destino não é compulsória, é antes de tudo uma escolha. E quando, por acontecimentos fortuitos, não se completa, fica provado que não era uma ação predeterminada ou predestinada.

Até que se chega ao lugar previsto. Que muitas vezes foi escolhido a dedo, depois de longo escrutínio de desejos e conveniências e cuidadosa, às vezes sacrificada, poupança.

Planejar uma viagem não difere muito de outras decisões que tomamos na vida pessoal e profissional, de comprar um carro a atingir uma meta ou um posto no trabalho. Nada a que tenhamos sido destinados desde o berço, mas que vamos moldando como objetivos que direcionam nosso percurso.

Se nas filosofias antigas, como nas religiões, na maior parte da história do pensamento, o destino parece aquela estrada com um porto de chegada inevitável (o destino é cego, e não há como dele fugir), modernamente se pensa que a história e o homem que a constrói podem, se não fixar inelutavelmente, ao menos ser agentes da determinação dos destinos possíveis, seja no plano coletivo ou na esfera do indivíduo.

O que torna ainda mais irônico que hoje nosso imperativo na existência esteja sendo o de não se mover, não se deslocar, não chegar a lugar nenhum.

Ou seja: sem contato nem compartilhamento do espaço social, sem trens ou aviões levando pessoas de um ponto a outro, sem viagens abrindo diferentes horizontes —nosso destino momentâneo aponta para nenhum destino à vista.

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