Parte alguma

Poucas semanas atrás li, com o interesse de sempre, a coluna de Bernardo Carvalho aqui na Folha, comentando o livro de uma autora que não conhecia: “Risque Esta Palavra” (editora Companhia das Letras), de Ana Martins Marques, mineira de 39 anos.

Naquele momento, envolto em turbilhão de afazeres (fora a preguiça de enfrentá-los todos), registrei vagamente a existência da obra, e, como acontece com mais frequência do que eu deveria confessar, contentei-me com a "orelha" do livro (no caso, o artigo de Bernardo), como tantas vezes faço com filmes ou músicas, apenas parasitando vergonhosamente o que dizem deles pessoas que admiro.

Fez o acaso, porém, que poucos dias depois o livro pousasse nas minhas mãos, presenteado pelo entusiasmado editor Matinas Suzuki, o que desarmou meu comodismo e me impeliu a pelo menos folhear aquelas páginas.

Sorte minha. E, se tomo tanto o tempo do leitor de Turismo a este respeito, é que uma das quatro partes do livro —intitulada "Postais de Parte Alguma”— se debruça sobre o tema das viagens.

De uma forma menos festiva e mais árdua do que o leitor deste espaço poderia esperar, mas totalmente em acordo com um ceticismo que a poesia de Ana Martins Marques expressa ante a nossa efêmera existência, e que espelha o momento de descalabro político e civilizatório que, com a sombra do fascismo bolsonarista, abate qualquer ânimo.

O poema "Parte alguma" é um banho de água fria —tem trechos como "nem a página em branco dos desertos / nem as savanas e sua promessa de aventura / substituem uma hora de leitura"; e também: "mais vale afinal ficar em casa / se é que se tem uma / e enviar-te este postal / de parte alguma".

O que de alguma forma ecoa um livro de 1884, chamado "Às Avessas", de Joris-Karl Huysmans (que também, na minha ignorância e preguiça infinitas, só conheci de orelhada, citado por Alain de Botton em seu "A Arte de Viajar").

Nele, um velho duque sedentário desiste na última hora de fazer pela primeira vez uma longa viagem, concluindo: "a imaginação era capaz de proporcionar um substituto mais do que adequado à realidade vulgar da experiência concreta".

Mas, dos poemas de "Risque Esta Palavra", o que mais me motivou a comentá-lo aqui foi "Fazer as Malas É Tarefa Impossível", que transcrevo integralmente:

"Fazer as malas é tarefa impossível:
aquele que ainda não partiu
tem que colocar na mala
aquilo de que precisará
aquele que vai chegar
a terra prometida a um
será no entanto entregue
a outro

As camisas que não cabem
empilhadas sobre a cama
servem perfeitamente
naquele que vai partir
mas deverão vestir
aquele que vai chegar

A passagem comprada por um
será usada por outro
e de seu próprio álbum de família
olharão para ele
parentes de outra pessoa

Quem está de partida
arruma a mala
de um desconhecido"

Neste caso, a melancolia impotente do desconhecido também cede lugar a uma pitada mais instigante, uma promessa de aventura.

No lugar de ser um festivo momento de explorar novas delícias ansiadas em destinos a desbravar ou memórias a reencontrar, viajar pode ser um gesto inútil, um salto estéril no escuro, e aquele estranho que te espera do outro lado pode tanto te completar quanto te apavorar.

Pode ser uma tentativa de fuga, na qual encontrar você mesmo adiante, à sua espera, seja a prova do fracasso em escapar da areia movediça. Mas todos nós, viajantes, mesmo quando viajamos sem sair fisicamente do lugar, temos direito a nossas esperanças... e então, viajar pode não ser um remédio, mas pode ser um bálsamo estimulante a semear mudanças.