Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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As bravas mulheres de Santa Luzia

Do canto para os aratus à merenda escolar, as tradições passam todas por elas

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Santa Luzia do Itanhy fica no sul de Sergipe. Tão ao sul que, postado na foz do rio Real, olhando para a outra margem, o que você vê é a Bahia. A bela ponta que divide o rio do mar é Mangue Seco, vilarejo baiano conhecido por ser um dos cenários das estripulias da personagem título do romance "Tieta do Agreste", de Jorge Amado.

Algo mais, além dos densos manguezais e da bela paisagem, identifica esta intersecção dos dois estados. A paixão pelo aratu.

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Caranguejo aratu no litoral de Sergipe - Divulgação

É como se chama o pequeno caranguejo vermelho que, em outros litorais brasileiros, vagueia impassível, ignorado pelos circundantes, mas que, na costa do Sergipe e neste pedaço do norte da Bahia, é alvo da cobiça gastronômica dos moradores: por ali o aratu é mais do que uma iguaria, é um produto de sabor familiar e tradicional, além de um meio de vida.

Passear pelas imediações permite avistar outros patrimônios de sabor local. As mangabeiras nativas produzem o ácido fruto típico de Sergipe, a mangaba, que também se presta a sucos e compotas. Nas mesas (de todo o estado), amendoim cozido na casca, servido ainda na fava para ser aberto e consumido entre goles da cerveja que espanta o calor tropical.

Mas a mais vistosa produção é a do aratu, porque ela toma discretamente a paisagem cotidiana das ruas dos vilarejos. Ela começa com a pesca, que acontece na aurora do dia nos manguezais da região. É ofício das mulheres, de seus olhos afilados, de suas mãos ágeis e calejadas, e também, acredite, de suas cordas vocais: pois é com seu canto que elas chamam seu alimento.

À tarde, o trabalho destas mulheres acontece fora do manguezal. Agora é a hora de "catar" o aratu —neste caso, além de pescar, é tirar sua carne, separar seus pequenos nacos das carapaças.

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Santa Luzia do Itanhy, em Sergipe - Divulgação

Este trabalho, embora individual, é feito em pequenos grupos de mulheres, sentadas juntas na calçada em frente de casa, enquanto socializam entre si e com a comunidade que passa.

Só em Santa Luzia do Itanhy são estimadas 300 mulheres (portanto, 300 famílias) dedicadas a esta economia, que faz a alegria dos apreciadores, mas nem tanto das produtoras: produto valorizado, gera lucros na cadeia de distribuição, mas ganhos pífios para estas mulheres.

Sem falar que seus idílicos passeios cantando entre os mangues são, na verdade, um trabalho duro e pouco saudável. Trabalho digno e de belas tradições, sem dúvida, mas que precisa ser seguro, e bem pago.

As bravas mulheres de Santa Luzia também são encontradas, reunidas, no povoado de Crasto, num pequeno atracadouro onde chegam barcos pesqueiros de maior porte. São elas que se reúnem para decorticar os camarões trazidos, desta vez, de alto mar.

E são mulheres também as merendeiras que cuidam da alimentação das crianças das escolas da região, equilibrando-se entre um orçamento modesto e uma visão padronizada de merenda que mal lembra as culturas locais.

É para estas merendeiras que neste instante falam, na creche municipal de Santa Luzia, dois chefs convidados, Janaina Rueda (Bar da Dona Onça e A Casa do Porco, São Paulo) e Max Jaques (Instituto Brasil a Gosto).

A dupla foi convidada pelo empreendedor social Saulo Barreto, do IPTI (Instituto de Pesquisa em Tecnologia e Inovação), uma organização social com dezoito anos de existência, e que tem aplicado iniciativas inovadoras no combate à pobreza utilizando arte, ciência e tecnologia.

Entre as várias frentes do instituto está o braço que eles chamam Nham, que, entre outras coisas, pensa iniciativas visando a segurança alimentar nas escolas e a integração com a agricultura familiar. Temas caros aos dois chefs convidados.

Os desafios não são poucos. Para piorar, a região está sendo tomada pelas criações de camarão de cativeiro, em tanques que despejam as águas com dejetos nos rios, ferindo de morte o ecossistema dos manguezais –promessa de liquidação dos aratus, dos mariscos e da economia familiar que gira em torno deles.

Exagero? Não. Basta ver a chacina ecológica e humana produzida pela mesma carcinicultura descontrolada no Ceará. É preciso preservar isso tudo.

Na dúvida, vista-se de turista e tome um café da manhã na Pousadinha da Lulu, no povoado do Pontal. Ou coma o catado de aratu e a moqueca de robalo fisgado no arpão no Restaurante da Dona Rosa, no povoado de Rua da Palha. Ou apenas observe a mansa subida da maré no povoado do Crasto.

Você vai me entender.

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