Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Josimar Melo

O Círculo Vicioso de Nova York

Não consegui entrar no clima da turma de Dorothy Parker no Algonquin dos anos 20

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há poucas semanas, em Nova York, resolvi passar dois dias num hotel próximo à Times Square e que há muito queria conhecer melhor– o The Algonquin, fundado em 1902. Não pelo hotel em si, mas pelo que ele representou para o jornalismo e a literatura dos Estados Unidos.

Em seu restaurante durante onze anos –de 1919 a 1930— almoçava o grupo de intelectuais apelidado de Círculo Vicioso, ou também, Round Table (a távola, ou mesa, redonda). Seu verdadeiro motor era a desbocada escritora Dorothy Parker (1893-1967).

Lembrei da gostosa experiência (que já relatei aqui) que tive em Cartagena, na Colômbia, quando hospedado no Sofitel Santa Clara, li "Do Amor e Outros Demônios", de Gabriel García Márquez —cuja história ficcional se passa, séculos atrás, no antigo e sombrio Convento de Santa Clara, onde hoje, lindamente restaurado, está o hotel.

Hospedei-me então no Algonquin, para ler in loco Dorothy Parker e seus companheiros. Mas o hotel me decepcionou. O restaurante Pergola havia virado um clube de jazz, o Oak Room, que também não existe mais, nem o Blue Bar que o sucedeu.

No espaço, sem mobiliário algum, agora há quadros no que hoje é uma patética galeria de arte do hotel.

Cena do filme 'Círculo Vicioso, a Vida de Dorothy Parker', dirigido por Alan Rudolph - Divulgação

O lobby ficou triste. Nas imagens antigas, tem colunas e sancas acobreadas e móveis coloridos dando vibração ao local. Agora, reformado durante a pandemia, colunas e teto são de um branco hospitalar. Ainda assim sentei-me ali para ler, tentando captar algo da atmosfera que alimentou aquelas mentes inquietas dos chamados loucos anos 20.

Mas como seria possível se nem o bar (cujo balcão foi transferido para o lobby) está funcionando? Como entrar no clima da Round Table, cenário de memoráveis libações (em plena Lei Seca!), sem um copo na mão?

Só para lembrar, é de Dorothy Parker a poética citação: "I like to have a martini / Two at the very most. / After three I'm under the table, / after four I'm under my host". (Gosto de um martini, no máximo dois; no terceiro estou debaixo da mesa, no quarto, debaixo do anfitrião.)

O grupo nasceu quando três jornalistas da revista Vanity Fair, então vizinha do hotel, começaram a almoçar sempre ali: Parker, crítica de teatro, Robert Sherwood, de cinema, e o editor Robert Benchley. Logo outros foram se acercando (inclusive Harold Ross, que fundaria a The New Yorker, e o comediante Harpo Marx, entre vários escritores e artistas).

Era um grupo de língua ferina e autorreferente, juntando perspicácia e sarcasmo, adepto a jogos internos e não raro irresponsáveis. Seu espírito transbordava para fora do círculo em seus escritos, chegando a influenciar novos escritores, como F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, na efervescente era do jazz do pós-guerra.

Para o público Dorothy Parker parecia uma alegre festeira —sempre bebendo, expelindo tiradas espirituosas, escrevendo livros e roteiros premiados.

Mas era uma pessoa sofrida, vítima de depressão e tentativas de suicídio, excesso de álcool e amores perdidos, fora a perseguição política —era alvo do macarthismo por suas posições progressistas (aliás, ao morrer ela deixou seus bens para a entidade antirracista de Martin Luther King).

Não obstante, seus percalços pessoais nunca tiraram o brilho de seus trabalhos, e foram até neles incorporados. No Brasil foi publicado pela Companhia das Letras o livro de contos "Big Loira e Outras Histórias de Nova York", infelizmente fora de catálogo. Uma pena, pois a Round Table acabou, o Algonguin feneceu, mas a obra de Parker continua viva e vibrante.

Epílogo: das dezenas de grandes frases da autora, para mostrar sua mordacidade deixo esta: "Tell him I’m fucking busy. Or vice-versa." (Algo como: diga-lhe que estou fodidamente ocupada. Ou vice-versa.)

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.