O dia começara bem cedo naquele início de primavera europeia, final de março último, e passava rapidamente pela janela do trem que me levava de Madri ao sul da Espanha.
O destino, na baía de Cádiz, era tentador: o restaurante Aponiente, do chef Ángel León, mago dos pescados e frutos do mar. Mais: ali ocorreria um almoço único produzido com dois convidados, o casal peruano Virgílio Martínez e Pía León, responsáveis, entre outros, pelo premiado Central, de Lima.
Mas, em vez de a expectativa excitar meus sentidos, o chacoalhar do trem inquietava minhas entranhas, que não obstante haviam sido tratadas regiamente nas vésperas. Entre outras aventuras, foram levadas a uma extensa degustação da cozinha inquieta e pungente do chef Dabiz Muñoz, enfant térrible de cabelo moicano do DiverXO de Madri.
E, na noite anterior à saída do trem, talvez entediadas com tanta cozinha moderna, tranquilizaram-se num bodegón centenário, La Ardosa, com uma bela (não necessariamente leve) dobradinha —ou callos à la madrileña.
Eram estes, talvez, que numa tertúlia familiar dentro de mim, se inquietavam com a noite de sono curta, e com o balanço do vagão. E assim intranquilos seguiriam por horas.
Era tudo o que eu menos esperava. Na chegada a Puerto de Santa María tudo era instigante. O Aponiente fica à beira-mar num complexo de prédios velhos, mas o edifício principal, um moinho do século 19, foi lindamente restaurado.
Dali avisto a histórica salina. E caminhando nos arredores, enfrentando o vento frio e salobre, percorremos uma paisagem bruta de pântanos onde peixes, caranguejos, algas e outras vidas marinhas, que vão enriquecer os menus do Aponiente, eternizam o ambiente pelo qual o chef León tanto preza: ele é um destacado militante da pesca sustentável e da defesa da biodiversidade marítima.
Tudo encantador —até começar a degustação. Meu corpo, estafado e enjoado, insistia em recusar a ingestão de qualquer coisa, sendo que não era bem "qualquer coisa" o que eu teria pela frente. O primeiro e aterrador bocado —das duas dezenas que se seguiriam— era, não obstante, uma das mais delicadas iguarias possíveis.
Uma tortilla redonda, do tamanho da palma da mão, finíssima e trabalhada como uma renda, salpicada por minúsculos camarões.
Mesmo esta pequena joia funcionou como uma madeleine perversa, evocando os dias seguintes aos piores excessos juvenis. Apenas a mordisquei e, envergonhado, deixei seus preciosos restos sob um guardanapo de papel displicentemente esquecido em um canto.
Durante metade do trajeto refeição adentro, prosseguiram a repulsa pelas obras-primas que se seguiam, e os estratagemas infantis para ocultar as sobras persistentes. Até que, inesperada e progressivamente, um milagre se operou.
Sem aviso, um pequeno aroma abriu uma primeira fenda na muralha de intolerância em que se tornara meu paladar. Em seguida, sabores insinuantes penetraram ainda mais os rombos que se abriam. E logo, os vegetais surpreendentes dos Andes revestiam meu palato com seus atávicos sabores; e as charcutarias e a porchetta e o mil-folhas, todos feitos de frutos do mar, brilhavam sua sabedoria e provocação.
Fiquei aliviado em constatar que mesmo o mal-estar provocado pelo excesso de comida boa tem seu antídoto: uma boa dose de mais excelente comida!
Epílogo: a refeição finalmente acabou bem, prazerosa e cheia de ensinamentos. Mas o corpo cobra os excessos, claro. O fim daquela tarde, no hotel, foi de calafrios sob as cobertas. Só levantei no dia seguinte. Pronto para outra, porém.
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