Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

O som da terra

Em 48 horas, Manaus relembra a intimidade da natureza e seus odiosos inimigos

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"O rio Solimões começa a subir."

"Rio Negro, que estava no menor nível em 17 anos, parece iniciar a cheia."

A apresentadora do jornal da TV continua falando. E eu ouço estas notícias, hipnotizado e maravilhado por ouvir comentários tão próximos sobre o movimento da natureza.

Hoje é terça-feira, tarde do dia 1º de novembro, e estou no hotel em Manaus, capital do estado do Amazonas. Não foi para ouvir isto que liguei a TV, mas sim para acompanhar os acontecimentos depois das recentes eleições.

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Morador navega pela praça central de Anamã (AM), alagada devido à cheia do rio Solimões - 5.mai.2021-Edmar Barros/Folhapress

Em Brasília o meliante (e futuro presidiário) Bolsonaro seguia chorando no banheiro, sem nada falar sobre a vitória da democracia que decidiu enxotá-lo do cargo. Pelas estradas do país, caminhoneiros lobotomizados pelos bandos fascistas interrompiam o trânsito berrando por um golpe militar.

Mas, no meio do zapping, onde parei mesmo foi numa emissora local, fascinado pelas notícias da Amazônia. Enquanto repórteres comentavam o fenômeno, a vinheta, fixa na parte inferior da tela, anunciava: "Fim da vazante? Rio Negro subiu 20 cm em sete dias".

Estou apenas por dois dias em Manaus, na região urbana. Mas já estive inúmeras vezes na floresta Amazônica e em vários países. Tenho razões até atávicas para me encantar pela floresta.

Mas, em São Paulo, onde vivo, falamos da natureza como algo distante no tempo e no espaço, a não ser quando atingidos diretamente por sua fúria, como nas enchentes.

Meu fascínio de hoje diante da TV vem desta proximidade dos fenômenos naturais com o cotidiano, a ponto de estar no noticiário vespertino.

Ontem, eu travara uma conversa que a um paulistano pareceria de outro mundo. Vim a Manaus para apresentar um evento do canal Sabor & Arte que enaltece o trabalho dos pequenos produtores de alimentos.

Alguns estavam lá; entre eles José Albino, que produz a inigualável farinha de mandioca de Uarini. Ele acabava de chegar de uma viagem de 570 quilômetros (em linha reta), que, na falta de estradas, foi feita por água, ao longo de 15 horas.

Foram duas horas de lancha de Uarini, que fica a leste de Manaus, até Tefé. E, em seguida, mais 13 horas de barco até chegar aqui. O tempo do trajeto varia com a época do ano: em épocas de cheia, é possível fazer um caminho mais direto; na vazante, é preciso fazer desvios para evitar áreas mais secas, retardando o trajeto.

Portanto, de novo a cheia ou a vazante interferem na vida cotidiana, inclusive de quem está nas cidades ou a seu caminho.

Uma das grandes experiências da vida (para os locais e para os urbanos) é fazer viagens como esta do produtor de Uarini. Ficar por horas no meio da mata, motor desligado, escutando os ruídos da terra, uma melodia que traz a paz do momento e o alento de que pode existir um futuro.

E, então, entrar no rio refrescante e ouvir o murmúrio das ondas que se afastam na superfície à medida em que o corpo vai sendo acolhido pelas águas.

Os facínoras que nos últimos quatro anos abriram a boiada a seus cúmplices que destroem esta natureza certamente preferem o ruído de motosserras, de picaretas de garimpo e o crepitar das queimadas criminosas.

Já eu sempre me emociono e vibro cada vez que vivo ou vislumbro esta pujança nacional amazônica. Talvez até mesmo por minhas origens.

Nasci no nordeste, de um pai nordestino, me criei no sudeste (primeiro Rio, e quase sempre São Paulo); mas outra metade do meu sangue veio da Amazônia. Minha mãe nasceu não numa cidade amazônica, nem à beira de um rio da região —ela nasceu em pleno rio: num barco que navegava pelo rio Abunã, afluente do Madeira, que alimenta o Amazonas.

Não dá para não reverenciar esta terra e estas águas, nem para tolerar os bandidos que a destroem.

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