Juca Kfouri

Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

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Juca Kfouri
Descrição de chapéu jornalismo

Audálio Dantas foi um dos homens raros que fazem um país

A História do Brasil deve a ele pelo fim da ditadura muito mais do que reconhece

No último domingo (3) lembrei de Alberto Dines, que perdemos no último dia 22.

Nesta segunda-feira (4) volto a chorar a morte de amigo querido, Audálio Dantas, morto no dia 30.

Cheguei de volta ao país a tempo, ao menos, de vê-lo pela derradeira vez.

O jornalista Audálio Dantas
O jornalista Audálio Dantas - Bruno Poletti/Folhapress

Audálio teve tanta valentia na vida que seu imenso talento como repórter, um dos maiores da imprensa nacional, acabou eclipsado pela bravura com que se comportou no episódio da tortura e assassinato de Vladimir Herzog.

Sem bravatas, sem um gesto demagógico, firme, mas prudente, não reconheceu a farsa oficial do suicídio e denunciou o assassinato.

Depois, articulou o culto ecumênico na Catedral da Sé celebrado por outros três gigantes --o cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, o reverendo presbiteriano James Wright e o rabino Henry Soebel.

Um quarteto à altura de Clarice Herzog, a viúva que virou símbolo da resistência pacífica e indignada contra a ditadura que começou a acabar ali, na Sé, copo prestes a transbordar como veio a acontecer em seguida, no assassinato do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho, em circunstâncias semelhantes, nos porões da polícia política da ditadura.

Ao quinteto, lembrarei sempre, se junta a figura de Fernando Pacheco Jordão, também jornalista, também recentemente falecido, outro sinônimo de coragem e bom senso.

Nos sombrios dias da execução de Herzog, havia apenas dois lugares para alguém de oposição ao descalabro se sentir seguro em São Paulo: na Cúria Metropolitana com Dom Paulo e no Sindicato dos Jornalistas, que Audálio presidia, Presidente com P maiúsculo.

Audálio era também Ordélio, porque para mim ele não pedia, mandava.

Ao ser colhido pela notícia de sua morte estava ainda em férias, em Lisboa, jantando com amigos.

Eu sabia da proximidade do desenlace e quando viajei tinha mais ou menos claro que talvez não o visse mais vivo, mesmo porque voltei para embarcar em seguida em direção aos 40 dias de Copa do Mundo na Rússia.

Meu único consolo é o de ter cumprido à risca uma promessa feita a mim mesmo muitos anos atrás: sempre que estivesse numa cerimônia pública com Audálio presente, fosse qual fosse o motivo do ato, eu lembraria o papel dele na História recente do Brasil.

Porque quem o viu atuar naqueles dias terríveis de outubro de 1975 jamais esquecerá de seu medo, porque corajoso é quem vence o medo, medo de todos nós, de suas dúvidas, de como ouvia a todos, e de sua firmeza diante das decisões tomadas, sem uma provocação.

Audálio não sabia nomes de jogadores de futebol, mas era corintiano, "muito corintiano", segundo sua inseparável companheira Vanira Kunc.

E era extremamente brincalhão.

Não faz muito tempo participamos de um encontro de jornalistas em Tiradentes (MG) e resolveram nos homenagear com uma comenda.

Precavido, mas de má vontade, levei um paletó.

Antes da cerimônia perguntei como ele iria vestido e ouvi que que "de camiseta, porque tinha se esquecido da homenagem".

Solidário, e louco para me livrar do paletó num calor de rachar, informei que então eu também iria de camisa polo.

Eis que ao chegar ao local, entre dezenas de cidadãos engravatados, encontrei Ordélio trajado com elegante camisa social, às gargalhadas quando me viu, tamanha era a minha gafe, além de parecer desrespeito.

Por indignado que eu me fizesse, não havia como fazê-lo parar de rir, moleque aos quase 90 anos.

Audálio Dantas, Audálio, Audalíco, Ordélio, foi embora.

Mas não foi.

Porque, chavões à parte, exemplos como o dele ficam, o corpo vira cinzas e elas se espalham, levadas pelo vento do bem-aventurados, dos homens raros, daqueles que, de fato, fazem um país.

Audálio Dantas é um deles.

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