Juca Kfouri

Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

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Juca Kfouri

Peças de museu

Imagine que desapareçam imagens de Pelé; ou as dos Ronaldos, do Sócrates

Doeu observar: o incêndio do Museu Nacional chocou mais a faixa menos jovem da população.
Cinquentonas e cinquentões para cima parecem ter sofrido abalo maior que a garotada abaixo dos 30.

Como se a memória fosse coisa de gente idosa, mais preocupada com o passado que com o futuro, apesar de até o passado no Brasil, alguém já disse, ser imprevisível.

Certa vez, um repórter da antiga revista Placar, cobrindo a Copa do Mundo de 1990, em Firenze, disse ao diretor da semanal de futebol que sua vida na cidade se limitava a ir do hotel para o centro de imprensa, do centro de imprensa ao McDonald’s e do McDonald’s ao hotel quando não havia jogos.

Nos dias de jogos incluía a ida ao estádio nesse roteiro frugal porque “Firenze era uma velharia desinteressante”.

O diretor da revista imediatamente recomendou a seu chefe de redação que nunca mais enviasse aquele jornalista em missão internacional.

Chavões do tipo “quem não conhece a história está fadado a repetí-la”, provavelmente como farsa etc etc etc apareceram como capim nos últimos dias por razões óbvias.

Ou outras menos óbvias, como por ter Luizas como mãe, irmã e neta, virar motivo adicional para lamentar o fim de Luzia.

Quem começou a vida de jornalista no departamento de documentação e pesquisa de uma ex-grande empresa jornalística, a editora Abril —infelizmente quase em cinzas—, também padeceu.

Documentos, pesquisas, história. Imagine que desapareçam as imagens do Rei Pelé e suas diabruras pelos gramados do mundo afora.

Digamos que a rara leitora ou o raro leitor que leem estas linhas não estejam nem aí para ele (quase que o “e” escapa em maiúscula), porque, afinal, nasceram depois de 1977, quando o atleta do século 20 já havia parado de jogar.

Pense, então, em ser privada/o das façanhas de Zico, o Galinho de Quintino, do Doutor Sócrates, de Paulo Roberto Falcão, o Rei de Roma.

Está certo, não serão poucas as raras leitoras, nem poucos os raros leitores, que também nasceram depois de eles terem parado de encantar o mundo com suas jogadas e, do mesmo modo em relação a Pelé, Mané Garrincha, Didi, Rivellino, Tostão, Gérson, Nilton Santos, Ademir da Guia, essa turma dos anos 1970/80 não lhes diz respeito.

Romário dirá?

Os Ronaldos, o Fenômeno e o Gaúcho, mais Rivaldo, dirão? E Marta?

Esqueça os indivíduos.

Suponha que virem cinzas as imagens do Santos arrasando o Benfica em Lisboa, em 1962, para ser campeão mundial pela primeira vez.

Ou as do Cruzeiro amassando o Santos, em 1966, para ganhar a Taça Brasil.

Ou as do São Paulo de Telê Santana, no Japão.

Ou as mais recentes, de seis anos atrás, da Fiel ao invadir o mesmo Japão em busca do Santo Graal.

Perdemos, simbolicamente, tudo isso e muito mais ao ver arder o Museu Nacional, a 770 metros, em linha reta, do Maracanã, onde o país enfiou cerca de um bilhão e meio de reais para receber a Copa do Mundo e a Olimpíada, embora não tenha querido gastar meio milhão por ano para manter seu Palácio Imperial.

Não custa lembrar de quem denunciava a megalomania dos megaeventos em solo pátrio e era chamado de mau brasileiro, de vítima do complexo de vira-latas pelos que sofrem da síndrome de cadela no cio.

Eis que agora todos, todos, repita-se, do passado e do presente, fogem de suas responsabilidades, gatinhos e gatunos assustados, porque condenados pela história.

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