Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu

Arte, literatura e ideologia

Obras que nos humanizam sempre desafiam toda forma de conservadorismo

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Em um dos seus textos para o jornal inglês The Independent, o escritor britânico Howard Jacobson —autor de “A Questão Finkler”— lançou o questionamento de serem arte e literatura capazes de nos tornar mais humanos. Segundo ele, a leitura de textos como “Middlemarch”, romance da escritora inglesa George Eliot (1819-1880), seria capaz de facilitar a humanização dos seus leitores, não apenas pelos temas abordados no livro —uma narrativa sobre a vida cotidiana e o drama de diversas personagens numa cidade do interior da Inglaterra—, mas pela interação exigida entre o leitor e o texto. 

O raciocínio por trás da afirmação é o de que o simples acesso à arte não é suficiente para nos tornar gente. Pois, mais importante do que o contato com a arte em profusão seria o tipo de relação desenvolvida com determinadas obras. Algumas vezes a paciência cultivada ao ler uma obra de linguagem mais sofisticada ou arcaica, outras vezes a atenção dispensada ao buscar o sentido do contexto e do drama das personagens é o que despertaria a necessidade de olhar para o mundo e para os outros indivíduos com tolerância.

Cumpre lembrar, contudo, da ironia de alguns oficiais nazistas executarem as suas vítimas ao som de composições clássicas, dizendo-se amantes das artes, em uma tentativa de adaptar aos seus objetivos políticos algumas criações artísticas ou literárias do passado. Por exemplo, a subversão da mensagem de obras como “O Mercador de Veneza”, texto de extrema complexidade, cuja temática é centrada no questionamento do exercício da empatia e da compaixão entre os homens, e não em denunciar e condenar o dito “caráter judaico” do seu protagonista. 

Há-se, também, de pensar sobre como é divulgada online a nossa herança cultural, muitas vezes a fazer da arte refém do posicionamento político, como se o cânone literário e artístico fosse mera plataforma para a exposição de afinidades ideológicas. 

Cumprindo ressaltar que a poesia de T.S. Eliot é maior do que as gratuitas demonstrações de senilidade precoce de jovens reacionários e que Simone de Beauvoir não é autora de apenas uma frase isolada, ao contrário do que pensam os ativistas de sofá, autodenominados revolucionários.

Na semana passada um amigo compartilhou a seguinte denúncia: “Quem pensa por slogans, não pensa: reproduz o mesmo. Quem cria poesia a partir de chavões ideológicos e palavras de ordem, não cria, os reproduz. A pura militância é endogâmica e endológica. Paradoxalmente conservadora.”

Esta observação tanto vale para criação artística como para a apreciação da arte. Vivemos um período delicado da história do Brasil e do mundo, em que os ânimos encontram-se acirrados e os homens —independente de classe social, ideologia política ou escolaridade— estão cada vez mais suscetíveis ao entrincheiramento de opiniões e à intolerância. Portanto, hoje mais do que nunca, carece-se de ter em mente que a arte e a literatura que nos humanizam sempre são desafiadoras de toda forma de conservadorismo reacionário, tanto de direita como de esquerda. 

Howard Jacobson está certo: um leitor atento de George Eliot —assim como um verdadeiro entusiasta da obra de Shakespeare— jamais submeteria a expressão e o entendimento da natureza humana ao fanatismo ideológico. Esse leitor não é mero consumidor de ideias, mas um indivíduo pensante, capaz de abarcar em si todas as contradições do humano e de olhar para o mundo com mais humildade.

Capa do livro "Middlemarch" exibe o título da obra, um subtítulo "Um estudo da vida provinciana", uma foto de uma casa grande e o nome da autora "George Eliot"
Capa do livro "Middlemarch", da escritora americana George Eliot - Reprodução

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