Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Esses moços, pobres moços!

A sociedade faz alguns sentirem-se livres para abusar de suas companheiras

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“O meu agressor não demonstrava em público o que era. Foi uma surpresa para quem o conhecia. Eu tinha um enorme medo de denunciá-lo. Afinal, quem vai acreditar?”, disse a farmacêutica Maria da Penha Fernandes à revista Veja, quando questionada sobre a sua história comparada à de Roberto Caldas —ex-juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos—, acusado de violência doméstica e assédio sexual.

Caldas fez carreira defendendo os direitos sociais dos trabalhadores. Foi um dos especialistas consultados durante o processo de elaboração da Lei Maria da Penha no combate à violência doméstica no Brasil. Publicamente, defendia a integridade física e psicológica das mulheres. Era um homem de conduta moral aparentemente ilibada. No entanto, teria sido capaz de cometer os mesmos atos de violência que combatia.

Roberto Caldas, o ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é acusado de violência física por sua ex-mulher e de assédio sexual por duas ex-empregadas
Roberto Caldas, o ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é acusado de violência física por sua ex-mulher e de assédio sexual por duas ex-empregadas - André Coelho/Folhapress

A literatura nos oferece uma série de exemplos sobre esse tipo de comportamento dissociativo. Na virada do século 19, escritores como Henrik Ibsen, Robert Louis Stevenson e Henry James procederam a estudos de casos sobre a hipocrisia e a desonestidade emocional levada a efeito por indivíduos em sociedade.

Histórias como “Os Pilares da Sociedade”, “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” e “Pelos Olhos de Maisie” retratam a dupla vida de homens e mulheres que —por se sentirem incapazes de autocontrole em suas vidas privadas— estão sempre dispostos a transmitir uma imagem de controle na vida pública.

Por isso, o depoimento de Maria da Penha desperta-me tanta atenção. Todos os dias escuto relatos de mulheres que já passaram ou estão a passar por situações de abuso. Converso com meninas metidas em um beco sem saída por se verem envolvidas em relacionamentos com homens —e muitas vezes famílias— que, da porta de casa para fora, pregam a autonomia e a igualdade da mulher, enquanto, entre quatro paredes, agem como carcereiros. 

Talvez essas meninas nunca venham a receber um tapa na cara, nunca sejam ameaçadas de morte ou chamadas de vagabundas. Ainda assim, se veem reprimidas em seus próprios espaços e buscam abrigo no artifício de constantes justificativas para si e para os outros, como se não tivessem o direito de afirmar identidade por haverem assumido posição junto a um bom e promissor rapaz, a quem não ousariam questionar publicamente, no temor de causar ou perplexidades ou especulações ou frustrações.

O depoimento de Maria da Penha complementa a mensagem da historiadora inglesa Mary Beard em “As Mulheres e o Poder: Um Manifesto”. Em uma interpretação histórica para a falta de representatividade feminina na política atual, a autora explica que, desde o período clássico, a formação dos homens para a vida pública ocorreria através do silenciamento das mulheres. 

Nesse sentido, a linguagem política teria herdado uma aparência masculina, fazendo com que algumas mulheres ainda se sintam desconfortáveis no exercício dos seus próprios direitos. Ao que a autora conclui: “Quando se trata de calar as mulheres, a cultura ocidental possui milhares de anos de experiência”.

Assim, a chantagem da sociedade machista dotada de “milhares de anos de experiência” dá motivo para que alguns moços, pobres moços, sintam-se livres para usar e abusar das suas companheiras, seguros da impunidade consagrada pela imposta cumplicidade de nenhuma delas se atrever a reagir ou a denunciá-los: “Afinal, quem vai acreditar?”

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