Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Todos iguais, tão desiguais

Ideal de autenticidade abraçado por grupos minoritários é falho e excludente

Em 1959, Hannah Arendt foi alvo de polêmica ao publicar um artigo sobre Elizabeth Eckford, a adolescente negra cuja foto, no seu primeiro dia de aula, tornou-se ícone do final da política de segregação nas escolas norte-americanas. Na foto, Elizabeth entra no colégio escoltada pela polícia e sob protestos de manifestantes brancos.

Comovida, Arendt escreveu que, independente de raça, nenhuma criança deveria ser obrigada a suportar o ônus de um problema que os adultos não foram capazes de resolver. Arendt ainda protestou que: "... de qualquer forma, a discriminação é um direito social, do mesmo modo que a igualdade é um direito político".

Segundo Michelle Dean, autora de "Sharp: The Women Who Made an Art of Having an Opinion" (algo como "Sagazes: As Mulheres que Fizeram do Opinar uma Arte", em tradução livre), Arendt demonstrou não ter conhecimento e vivência suficientes do problema racial norte-americano. No entanto, a autora também comenta que Arendt teria sido motivada a escrever sobre Elizabeth Eckford por motivos nobres; mesmo que se tenha revelado instrumento de uma bondade estrábica.

Assim como Arendt escreveu sobre Elizabeth Eckford, hoje escrevo sobre Fabiana Cozza; também por motivos nobres. Talvez eu seja igualmente acusada de miopia social, mas isto pouco importa. O que as políticas identitárias demonstram no Brasil é que, apesar da boa vontade, somos todos obtusos. A única diferença talvez seja a de que, enquanto uns impõem a miopia como cosmovisão, outros têm o bom senso de duvidar dos próprios sentidos.

A cantora Fabiana Cozza
A cantora Fabiana Cozza - Marcus Leoni/Folhapress

Muito me comoveu a carta de renúncia da cantora escolhida para interpretar a sambista Ivone Lara no teatro, na qual se lê: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e, numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos.”

O protesto de Cozza lembrou-me uma série de outros a que tive acesso para produzir um relatório sobre cristãos novos e judeus retornados, encomendado por um instituto de pesquisa israelense. A acusação de que ela teria a pele muito clara para interpretar Ivone Lara lembrou-me o fato de uma imigrante acusada pelo companheiro de não ser judia o suficiente.

O que mais assusta nessas histórias é o descaso cada vez mais patente pelas narrativas de pessoas que poderiam optar por uma identidade convencional e livre de preconceitos, mas não veem para si outra opção senão abraçar o lado de suas origens que a sociedade enxerga como sendo o mais problemático. Se, ao identificarem-se como negras ou judias, são vítimas de iguais preconceitos, por que será que muitas vezes elas também se sentem vitimadas dentro das suas próprias comunidades?

Em sua carta, Fabiana Cozza escreve que não devemos trazer o racismo para dentro do nosso próprio terreiro. Há de se concordar com Fabiana, cujo comentário reverbera a crítica do poeta Heinrich Heine sobre o judaísmo: talvez os nossos maiores adversários estejam entre nós mesmos.

Hoje muito se comemora o fato de apenas as minorias terem autoridade para decretar quem faz ou deixa de fazer parte dos seus contingentes. O que não se percebe é como o ideal de autenticidade abraçado por grupos minoritários é falho e excludente, muitas vezes sintomático do próprio trauma: acarretando na perpetuação do ciclo de violência moral contra o indivíduo em seu processo de autoconhecimento.

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