Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Discurso antidemocrático deriva do desprezo pelo homem comum

Desqualificar pessoas receosas pela manutenção de seus valores abre espaço para extremismo

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“Que besta bruta, de hora enfim chegada,
Rasteja até Belém para nascer?”
(W.B. Yeats, "A Segunda Vinda")

Em texto para o jornal The Irish Times, o crítico literário Fintan O’Toole explica-nos como estas linhas do famoso poema de W.B. Yeats encontram expressão na mídia todas as vezes em que passamos por graves crises políticas e culturais.

Isto aconteceu em 1968, quando elas serviram de título para a coletânea de ensaios de Joan Didion sobre os desajustes da sociedade norte-americana na década de 1960. Como em 2016, nos vários artigos publicados sobre o Brexit e a chegada de Donald Trump à Casa Branca; ou em outubro deste ano, quando Howard Jacobson as citou em comentário sobre nomeação de Brett Kavanaugh para a Suprema Corte dos Estados Unidos.

Foi assim que, na semana passada, perdida em meio a expressões de ressentimento de um eleitorado embevecido pela soberba e a desinformação, pensei em render-me ao enigmático poema de Yeats, quando, por um golpe de sorte, esbarrei com um artigo de Fernando Gabeira chamando-nos à realidade.

Ao ler o texto, pensei nada adiantar entrarmos em desespero. A única maneira de domarmos a besta que ora chega ao poder é fazendo bom uso da razão. Como Hércules fizera em sua vitória contra a Hidra de Lerna, temido monstro da mitologia grega.

Segundo Gabeira, esta teria sido a lição por ele extraída ao estudar os eventos que culminaram com a chegada de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos.

Assim, diz o autor sobre as nossas próprias eleições: “As frases preconceituosas que ele [Bolsonaro] eventualmente dizia são as mesmas que ouvimos nas ruas de todo o Brasil. (...) A minha atitude não foi a de rotular de fascista, misógino, racista ou homofóbico, mas compreender que, por baixo dessas reações populares, existe uma insegurança sobre as mudanças culturais, e é preciso buscar avanços que não provoquem um retrocesso maior”.

Neste mesmo tom, Simon Kuper —colunista do jornal Financial Times— tece críticas pontuais não apenas ao Brexit e seus apoiadores como também à frustração daqueles que votaram pela permanência do Reino Unido na União Europeia, os famosos "remoaners", representados por uma parcela da população britânica beneficiada pelo acesso a uma boa educação e por uma teia de contatos e experiências favoráveis à adaptação em uma ordem cultural cosmopolita e tolerante.

Em artigo do mês de setembro, Kuper observa que não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que o populismo de viés nacionalista seja incapaz de estabelecer lideranças fortes e duradouras.

Para o autor, Polônia, Hungria e Israel são exemplos de países cujos governos estáveis estariam prestes a reduzir à insignificância os grupos de oposição liberais, seculares ou de esquerda.

Podendo o mesmo acontecer nos Estados Unidos e na Inglaterra, caso Trump e os "brexiters" permaneçam no comando, sem que as forças liberais encontrem uma resposta eficaz para o falso apelo populista, ou para o real problema de adaptação cultural que aflige a parcela escanteada, desassistida e inculta de suas populações.

A solução para tal problema não depende exclusivamente de boa vontade política. É inegável que questões culturais importantes como as demandas de grupos feministas e minoritários por igualdade, tolerância, respeito e representatividade desestabilizam a percepção que muitos têm das suas próprias identidades.

Na introdução do seu último livro, Camille Paglia chama atenção para como, a partir da década de 1960, a excessiva politização da crítica cultural teria inibido muitos teóricos e ativistas em dialogar com áreas de conhecimento necessárias ao estudo das motivações humanas, tal como a psicanálise.

Assim, ao comentar sobre as consequências do modelo de crítica cultural abraçado por representantes do feminismo americano, Paglia diz: “A rejeição de Freud pelo movimento feminista eliminou ferramentas básicas de análise psicológica até então úteis à crítica cultural”.

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A ensaísta norte-americana Camille Paglia - Raquel Cunha/Folhapress

Segundo a autora, a partir daí as subsequentes gerações de agentes culturais —intelectuais, artistas e escritores—, formadas pelas mais célebres instituições de ensino do país, teriam perdido a noção de como questionar aspectos problemáticos da motivação humana, diretamente relacionados com a precariedade das nossas identidades individuais; como a compulsão por repetir experiências ou a ambivalência de afetos, característica dos relacionamentos humanos.

Assim, Paglia questiona de que modo esses agentes pretendem fomentar uma reflexão sobre cultura, política e a natureza humana. Enquanto muitos renitem em desqualificar as apreensões de homens e mulheres de mentalidade simples, estes estão receosos pela manutenção dos poucos valores que, embora antiquados, ainda lhes servem de bússola para navegar por este mundo tão complexo.

Ora, as consequências do desprezo pelo homem comum estão aí para quem quiser ver: candidatos despreparados, discursos antidemocráticos e preconceituosos e demonstrações de ódio e violência.

Estivéssemos atentos ao que não nos agrada em nossas motivações ou ao que achamos indigno e medíocre em nós mesmos e nos outros, não teríamos entrado no problema em que nos metemos: a besta é deste mundo; habita em cada um de nós.

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