Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Por que escrever?

A escrita ainda é o melhor e mais eficiente protesto para proteger a liberdade

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Em novembro de 2018, a filósofa Andrea Faggion publicou uma reflexão sobre a importância da escrita em nosso cotidiano. Segundo a autora, em tempos tão incertos como os nossos, em que o debate político se faz cada vez mais refém da desinformação, escrever nos oferece rara oportunidade de questionamento sobre a validade dos argumentos que adotamos para justificar as nossas opções.

Coincidentemente, em dezembro passado, a Anpof (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) publicou um texto de Ernst Tugendhat sobre o ensino da matéria nas universidades, ressaltando a importância da escrita na formação filosófica. De acordo com Tugendhat: o estudante de filosofia deveria ser estimulado a escrever desde cedo, aprendendo a dialogar com o pensamento alheio para expressar as suas ideias com clareza e segurança.

Neste sentido, a proposta de Tugendhat para a universidade muito se assemelha à reflexão de Faggion sobre o cotidiano; chamando a atenção para que —embora muitos não tenham por objetivo se tornar escritores— uma das principais funções da escrita seja ensinar a pensar por conta própria.

No século 18, Immanuel Kant definiu o pensamento próprio como o exercício corajoso e independente da razão pelo indivíduo. No entanto, Kant adverte-nos de que para bem empregarmos a razão, precisamos tomar cuidado para não nos seduzirmos pelo comodismo de sermos guiados pelo pensamento alheio: como se fôssemos crianças em busca da aprovação paterna.

Assim, na filosofia acadêmica, buscamos a aprovação dos mestres ao tentarmos adequar o nosso pensamento ao sistema de um determinado filósofo; sem ousarmos questionar os erros e as inconsistências das suas doutrinas.

Mulher segura o livro "1984", de George Orwell
"1984", livro escrito George Orwell - Toby Melville/Reuters

Por simples receio de estarmos desafiando uma tradição, esquecemo-nos, portanto, da célebre mensagem de Edmund Burke: “[Ora] eu ainda não encontrei um projeto sequer que não tenha sido beneficiado pelas observações daqueles que eram muito inferiores em entendimento à pessoa que tomou a liderança em sua execução”.

Igualmente, no cotidiano, essa mesma busca por aprovação se traduz na aceitação de discursos que vão de encontro à realidade. Por exemplo: ao acreditarmos que a Terra seja plana ou que as mulheres sejam inferiores aos homens; sem jamais questionarmos essas informações e a credibilidade de quem as divulga.

Ao escrevermos, no entanto, defrontamo-nos com a necessidade de emprestar uma ordem e uma justificativa para o que pensamos. Nesse diapasão, tornamo-nos conscientes de que, para que o nosso argumento tenha força, precisamos descrever fatos e aplicar conceitos objetivamente. Pois, ao falharmos nesse exercício, falhamos também em provar a validade do nosso posicionamento.

Escrever também nos torna conscientes das motivações que temos ao abraçar certas ideias. Afinal, toda opinião é fruto da tênue relação entre a nossa emotividade e o exercício da razão. Dessa maneira, a escrita cumpre um importante papel terapêutico, dando ao indivíduo a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre si, ao mesmo tempo em que busca um sentido para o mundo.

Na literatura do século 20 encontramos vários personagens cuja jornada de autoconhecimento tem início a partir da escrita e da necessidade de compreender a própria realidade.

Em “Herzog”, Saul Bellow conta a história de um homem que começa a escrever cartas compulsivamente para mortos e vivos —inclusive para Deus— até conseguir se recuperar emocionalmente de um malfadado divórcio: “Como minha mente tem batalhado em busca de um sentido coerente. Não tenho sido muito bom nisso. Mas tenho desejado cumprir sua vontade insondável, tomando-a, e a você, sem símbolos. Tudo da mais intensa significação. Especialmente despojado de mim!”.

Já em “1984”, George Orwell descreve um mundo onde o exercício do pensamento individual se tornou inadmissível. Assim, o principal ato de rebeldia do personagem Winston Smith contra o sistema teria sido adquirir um diário no qual ele escreve as suas memórias, impressões sobre o cotidiano e críticas ao regime do Big Brother. Winston escreve para combater os fatos alternativos divulgados pelo governo, porque precisa provar para si mesmo que o mundo já foi diferente e que, nem sempre, os seus vizinhos representaram uma ameaça.

Recentemente, o clássico de Orwell tem gozado de renovada celebridade. Entre os leitores, muitos acreditam que nenhum outro livro poderia nos servir de antídoto para os sintomas de obscurantismo político e cultural que eclodiram nas mais poderosas democracias do Ocidente. Demonstrando que, muitas vezes, precisamos defender aquilo que temos por certo e que, apesar de frágil, a escrita ainda é o melhor e mais eficiente protesto para proteger a liberdade e reafirmar que dois e dois são quatro.

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