Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Artistas engajados e suas contradições

O que dizer da participação de gente como Caetano Veloso numa festa com ares de Brasil Colônia?

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No começo deste ano, Daniela Mercury e Caetano Veloso lançaram a canção “Proibido o Carnaval”. Composta por Daniela, a marchinha reage à onda conservadora que instiga o debate político e as nossas práticas cotidianas. Desmascarando o vazio afetivo e intelectual que permeia o arcaísmo da nova direita e a caretice disfarçada de vanguarda das esquerdas que, atualmente, vacilam em articular um discurso unificador dos interesses populares.

Afinal, de que outra maneira poderíamos entender a alternância entre as vozes de Daniela e Caetano ao entoarem diferentes versões das estrofes que se encerram com os versos “vestida de rebeldia, provocando a fantasia” e “vestida de fantasia, provocando a rebeldia”?

Em um trocadilho quase imperceptível ao ouvinte, porém capaz de universalizar a mensagem da composição, Daniela recria o clima de tolerância e desinibição do nosso carnaval e —por que não— do que há de melhor em nossa cultura popular e no legado artístico de Caetano.

Em texto de Claudio Leal, a compositora explica que Caetano teria sido convocado por ela para emprestar legitimidade ao seu tom de protesto: “O axé é a encarnação do desejo tropicalista de liberdade, democracia e brasilidade”.

Cresci em ambiente pernambucano tradicionalista —onde o axé era refutado—, e frequentávamos o Bloco da Saudade, exaltávamos o frevo e o carnaval de rua de espontânea manifestação: a discutir sobre as semelhanças entre as nossas tradições e as jocosas procissões de "adloyaddah" durante o feriado judaico do Purim.

Traduzindo-se para mim em uma experiência que, mais tarde, eu reconheceria na crítica de Otavio Frias Filho ao movimento armorial de Ariano Suassuna: “[Ele] é uma vertente da cultura popular brasileira que não deu em nada, porque não tem o elemento negro. Ela é popular, mas é branca. (...) Falta ao Suassuna esse elemento praiano, afrobrasileiro. (...) Ele tem uma concepção do popular e do nacional muito forte, muito enraizada, mas branca”.

Foi, portanto, o contato esporádico com o axé e o samba-reggae dos anos 1990 e com o tropicalismo e a poesia de Caetano que me despertou para a pujança do elemento praieiro —de matiz mestiça e negra— da nossa cultura popular. Compreendi, através da apreciação dessas obras, como a presença negra é essencial na formação do povo brasileiro. A emprestar um caráter único à nossa identidade, mesmo entre artistas tidos como brancos, ao exemplo de Adriana Calcanhotto que, em “Senhas” —um disco marcado por cores, texturas e assimetrias—, incorpora, com muita sensibilidade, temas sobre a mestiçagem e a desarmonia da relação entre brancos e negros em nossos ambientes urbanos.

É em contraste com a sensibilidade de Calcanhotto e a sua capacidade para denunciar o mito da democracia racial brasileira que me reporto a Caetano. Desta vez, para compreender a sua participação na polêmica festa dos 50 anos de Donata Meirelles, ocorrida neste final de semana em Salvador.

Sabemos que artistas populares não são infalíveis. Alguns, inclusive, por força das circunstâncias —como o apoio de movimentos sociais às políticas identitárias— veem-se obrigados a corrigir velhas composições ou readequar a sua imagem ao perigoso jogo do politicamente correto que, como ressaltei em minha coluna anterior, corre o risco de alimentar discursos cada vez mais reacionários.

Se a recente colaboração de Caetano e Daniela Mercury mostrou-se engajada no momento político brasileiro, o que dizer da sua participação naquela festa nababesca com ares de Brasil Colônia?

O evento foi criticado pela historiadora Lilia Schwarcz, autora de “Brasil: Uma Biografia”, como uma expressão do racismo estrutural de nossa sociedade. Bem como pela escritora e ativista Djamila Ribeiro (“Quem Tem Medo do Feminismo Negro?”), que protestou por coerência e responsabilidade moral dos convidados da festa.

Em um vídeo publicado no Instagram, Djamila comenta: “Eu prezo pela honestidade intelectual (...) para além da dona da festa, que tem que ser responsabilizada, sim. (...) As pessoas que lá estavam também devem ser responsabilizadas; sobretudo aquelas que se dizem antirracistas”.

Ora, não seria esse o caso de Caetano? Um artista que conquistou a admiração de tanta gente pelo tom engajado de sua obra poética e pela sua capacidade de diálogo com as mais diversas expressões da cultura brasileira, tal como a religião e a música negra?

Espanta-me que, em 2015, Caetano, em Tel Aviv, tenha se mostrado tão sensível ao pleito do povo palestino a ponto de executar um espetáculo —ao lado de Gilberto Gil— sem demonstrar empatia por um público composto por todo tipo de gente; inclusive por mim e muitos brasileiros residentes em Israel: contrários à política do governo Netanyahu e sequiosos de Brasil após ininterruptos anos fora de casa.

Enquanto, durante a festa da diretora da revista Vogue Brasil — conforme vídeos divulgados no Instagram—, ele tenha se ocupado de agradar um público aparentemente alheio aos sentimentos da brasilidade, ao apresentar-se em meio a uma decoração que, naquele contexto específico, teria servido apenas para ressaltar o exotismo e a posição tradicionalmente subalterna do negro em nossa sociedade.

Caetano não é o único artista brasileiro que, mesmo ao se demonstrar politicamente engajado, muitas vezes falha ao interpretar o contexto em que as suas obras são executadas. No entanto, o ocorrido deste final de semana me faz pensar sobre as limitações da arte engajada e do politicamente correto em nos proporcionar um espaço para refletirmos sobre as atitudes morais e transformarmos as nossas comunidades

Não seria o engajamento da expressão artística contrário a uma tradição humanista que desperta reflexão sobre os dilemas da nossa condição, tornando-nos cada vez mais solidários ao próximo a partir do momento em que a imaginação nos provoca a enxergarmos cada de um nós no lugar do outro?

Afinal, não é isso que aprendemos ao estudarmos os clássicos da literatura —principalmente as tragédias gregas—, ao percebermos que estamos todos irremediavelmente vulneráveis aos mesmos sofrimentos e dilemas vivenciados pelas suas personagens?

Talvez a resposta para estas perguntas possa ser encontrada em "The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy", livro em que a filósofa Martha Nussbaum discute a influência da tragédia em uma vertente do pensamento moral dos antigos gregos.

De onde se pode extrair a lição de que, para superarmos as contradições do engajamento artístico e do politicamente correto, precisaríamos de repensar o exercício moral pela razão através do reconhecimento das nossas fragilidades: “[Como] uma excelência que é em sua natureza relacionada ao exterior ["other-related"] e ao social, uma racionalidade cuja natureza não se deve tentar capturar, agarrar, prender em armadilhar e controlar, em cujos valores a abertura, a receptividade e o fascínio desempenham uma parte importante.”

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