Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Por que ler mulheres?

É preciso contornar lógicas sexistas do mercado editorial e das premiações literárias

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Em 2015, a escritora britânica Kamila Shamsie se queixou no jornal The Guardian da desigualdade entre homens e mulheres no mercado editorial. Shamsie ressaltou que escritoras têm acesso limitado às premiações literárias de prestígio, como o Man Booker Prize, e que prêmios especializados em literatura produzida por mulheres, como o Baileys, não recebem a devida atenção da mídia. 

Segundo a autora, no ano anterior ao seu protesto, apenas três mulheres foram incluídas na lista dos 13 finalistas do Man Booker, o que dá a impressão de que as mulheres não escrevem ou, se o fazem, escrevem mal se comparadas aos homens. Mas será que isso faz algum sentido?

Alguns anos atrás, o escritor V.S. Naipaul, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2001, provocou um enorme rebuliço ao considerar sua obra superior à de qualquer escritora de língua inglesa, principalmente em comparação com a de Jane Austen.

Os textos de Austen servem de inspiração tanto para mulheres como para homens, de forma parecida aos do novelista Howard Jacobson, que recusou, na mesma época, a comparação com Philip Roth para se descrever como uma "versão judia de Jane Austen". 

Para Naipaul, a escrita feminina revelaria uma visão bastante restrita e sentimental do mundo, que ele atribui ao fato de as mulheres não gozarem do mesmo grau de autonomia dos homens: “A mulher, inevitavelmente, não é o chefe da casa [...]. Quando eu leio um texto, consigo notar em um ou dois parágrafos se ele foi ou não escrito por uma mulher”.

No entanto, um teste proposto pelo jornal The Guardian mostra ser quase impossível adivinharmos o sexo de um escritor com tamanha precisão. Tiramos conclusão semelhante ao ler, no mesmo jornal, o artigo de Sarah Churchwell, professora de literatura da Universidade de Londres e antiga jurada do Man Booker.

No texto, Churchwell comenta o número insignificante de mulheres indicadas ao prêmio de 2014, ressaltando que esse número não refletia uma diferença de qualidade do trabalho de homens e de mulheres —o que revelaria, portanto, uma institucionalização de práticas sexistas no mercado editorial.

De nada adianta agredir os jurados como se todos eles fossem cúmplices de uma conspiração contra as mulheres e outras minorias: “Nós estudamos o que as editoras enviam [...]. Dos 156 autores que nos são encaminhados, apenas uma pequena fração é composta por mulheres [....]. No fim das contas, tudo o que você pode fazer é julgar os livros que estão à sua frente, esforçando-se para manter a atenção durante a leitura, fazer jus aos escritores e lhes conceder uma oportunidade”.

Foi essa controvérsia do Man Booker que inspirou Shamsie a propor que as editoras celebrassem 2018, centenário do voto feminino no Reino Unido, como ano dedicado exclusivamente à publicação de obras de mulheres, principalmente de ficção —área em que, segundo a escritora, a desigualdade entre profissionais de sexos distintos é mais evidente.

Três anos mais tarde, somente uma pequena editora concordou em participar do desafio estabelecido por Shamsie. No entanto, sua provocação inspirou uma ampla discussão entre líderes do mercado e empresas de médio porte, como a Canongate Books, responsável pela publicação de Patrisse Cullors, cofundadora do movimento Black Lives Matter

A proposta de Shamsie também motivou uma série de outros desafios literários, como a experiência da jornalista Alice Fishburn, publicada em dezembro de 2018 pelo Financial Times.

Em ensaio, Fishburn comenta sua decisão de consagrar um ano à leitura exclusiva de mulheres. A sua iniciativa ganhou corpo a partir da observação do sistema de pontuação que seu irmão mais novo havia criado para se motivar a ler mulheres e outras minorias. 

Segundo a autora, as regras do irmão funcionavam da seguinte forma: “Pela leitura de uma mulher, ele receberia um ponto. Por cada escritor vivo, outro ponto. Se a mulher estivesse viva, ele receberia dois pontos, enquanto a leitura de um autor falecido lhe custaria igual pontuação. Seu objetivo era conseguir manter um total acumulado de zero ou superar essa pontuação. Mas, para isso, ele sentia dificuldades”.

Impressionada com tamanha disciplina, Fishburn, que se define feminista, viu-se obrigada a confrontar a precariedade das suas próprias estantes, questionando quão difícil seria, em nossa época, ter notícias do trabalho de escritoras antigas e contemporâneas.

Ela surpreendeu-se ao constatar que, apesar de todo o seu feminismo, a sua lista de leituras do ano anterior resumia-se a títulos de “literatura vitoriana e testosterona”.

Herta Müller, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2009. - Paul Esser/Divulgação

Desde dezembro guardo esta matéria em uma prateleira da cozinha, a fim de pensar no que escrever. Lembro-me de que a minha reação ao ler a manchete do jornal pela primeira vez foi de espanto. Afinal, aprendi a ler e a pensar sob o estímulo de Cecília Meireles, em uma época em que os pais ainda presenteavam os filhos pequenos com poesia, ao invés de distraí-los com bugigangas eletrônicas.

Ou isto ou aquilo, portanto, tornou-se para mim uma espécie de mapa da mina, informando muitas experiências que eu teria ao crescer. Ou se é esposa e não se torna filósofa, ou se torna filósofa e não tem marido!

Cecília bem expressa o dilema: “Quem sobe nos ares não fica no chão. Quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares!”

Assim, desde cedo atinei para a escrita e o hábito da leitura como um dos elementos da minha identidade feminina, entusiasmada tanto pela obra de Cecília como por sua imagem estampada na cédula de cem cruzados novos. Um eficaz lembrete de que caberia a mim, por meio dos meus próprios esforços de mulher, conquistar a independência financeira.

Em um ou outro momento difícil da vida, foi na obra das minhas escritoras prediletas que encontrei conselhos e soluções para lidar com o meu próprio desassossego, como no dia em que, carente de quem me aconselhasse a acabar um namoro, pude reencontrar a minha avó em um conto de Clarice Lispector: “[...] uma velinha amável e lúcida, a quem contei o caso, inclinou a cabecinha branca e explicou-me que os homens costumam construir teorias para si e outras para as mulheres. Mas, acrescentou depois de uma pausa e um suspiro, esquecem-nas exatamente no momento de agir... Retruquei a vovó que eu, que aplicava com êxito a lei das contradições de Hegel, não entendera palavra do que ela disse. Ela riu e explicou-me bem-humorada: Minha querida, os homens são uns animais”.

Por isso, quando me diziam ser impossível para uma mulher tornar-se alguma coisa, ainda menina, criei o hábito de conferir qualquer informação na biblioteca do colégio ou em consulta aos livros da coleção do meu pai. Aos que me desafiavam a encontrar uma filósofa, eu invocava os nomes de Simone de Beauvoir e Hannah Arendt.

E, se alguém me dissesse que uma mulher não poderia se arriscar a viajar sozinha, eu respondia: então será que nunca houve correspondentes de guerra como Martha Gellhorn ou escritoras que vivenciaram conflitos como Susan Sontag e tantas outras?

Enfim, o que aprendi desde cedo em contato com textos produzidos por mulheres foi o mesmo que Alice Fishburn extraiu durante o seu desafio literário: “As frases não se tornam mais ousadas ou mais brilhantes graças ao gênero do escritor. Mas, conforme o número de vozes femininas na minha vida aumentou, algo tornou-se bastante distinto. Ninguém mais explica as mulheres para mim. Personagens e pontos de vista femininos, de repente, passaram a existir: falhos ou ardentes, mal desenhados ou ricamente matizados. Aí estão elas sem arrodeios: sem filtros, surpreendentes e reconhecidas”.

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