Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Notre-Dame permite rara compreensão do significado de civilização

Proteção eficaz de uma cultura depende da competência para reavivar as criações do passado

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Na semana passada, o incêndio na catedral de Notre-Dame pegou todos de surpresa, causando as mais diversas reações entre entusiastas da cultura francesa, católicos fervorosos ou relapsos e gente como eu, que embora não partilhe de uma ótica cristã, reconhece na ciência e na arte o esforço de todo ser humano em estabelecer uma narrativa sobre o mundo e, principalmente, sobre as próprias emoções.

Em resposta a comentários sobre o incêndio, compartilhei nas redes sociais uma foto do historiador britânico Kenneth Clark diante da catedral parisiense, ponto de partida para as suas reflexões em "Civilisation", famosa série documental produzida pela BBC no final da década de 1960, na qual ele investiga o desenvolvimento dos valores que regem a sociedade ocidental a partir de diversos marcos da nossa história da arte.

Assim, no episódio inaugural, Clark comenta que somente ao nos defrontarmos com uma estrutura tal como Notre-Dame passamos a compreender o significado da palavra civilização como algo que raramente conseguimos definir com objetividade, mas que somos capazes de reconhecer ao primeiro contato.

No entanto, o historiador também adverte que talvez seja em virtude desta indescritível sensação de familiaridade que toda civilização —por mais antiga e influente que seja— corra o risco de desaparecer em instantes; como o teto da catedral que vimos desabar, consumido pelas chamas.

Afinal, somos apenas capazes de preservar aquilo que conhecemos de forma organizada, através da vagarosa disciplina conquistada pelo diligente emprego da razão. Ou seja, a eficaz proteção de uma cultura depende da competência para refletir sobre as experiências e reavivar as férteis criações do passado, através de fórmulas que sejam pertinentes ao enfrentamento dos desafios no presente.

Raciocínio que se confirma nos argumentos do seriado. Diz Clark: “Vigor, energia e vitalidade: todas as civilizações —ou fases civilizatórias— foram movidas por uma energia própria. (...) Às vezes, as pessoas acham que a civilização consiste em sensibilidades refinadas, boas conversas etc. Estes elementos estão entre os mais agradáveis frutos de uma vida civilizada. No entanto, eles não constroem uma civilização. Uma sociedade pode muito bem nutrir tais amenidades mesmo estando entravada, morta.”

Às nossas vistas, talvez o documentário de Clark não seja perfeito e acabe por revelar a face conservadora de um homem aparentemente grave, que não tolera a anarquia dos protestos de rua que tomaram conta de Paris em maio de 1968 enquanto se esforça em descrever o potencial civilizatório da catedral.

Diante disso, precisamos lembrar que o autor pertencera a uma geração já muito distante da nossa, profundamente marcada pelo horror de duas guerras mundiais. Não sendo à toa, diz Simon Schama —historiador inglês que durante a juventude na década de 60 participou dos protestos de rua em Montparnasse— que Clark tenha envidado esforços em enaltecer o papel da ordem e da harmonia na arte e no sucesso da empreitada civilizatória ocidental.

Talvez seja por isso que, em seu documentário, Clark demonstre não existir uma real contradição entre conservadorismo e modernidade, podendo muito bem um indivíduo expressar-se de forma conservadora sem que para isso tenha a necessidade de rebaixar-se em uma escala de humanidade, manifestando posicionamentos retrógrados, intolerantes e contrários à razão.

Ora, Clark comenta em seu documentário que um dos principais inimigos da civilização seria o medo do progresso, amparado em crenças e ideologias reacionárias, sejam de direita ou de esquerda, que impedem o questionamento da realidade.

Segundo ele: “O mundo antigo estava repleto de rituais sem sentido e religiões de mistério que destruíram a autoconfiança. E, consequentemente, [de] exaustão [ou seja] a sensação de desesperança que pode apanhar de surpresa mesmo aquelas pessoas com o maior grau de prosperidade material. Há um poema do escritor moderno grego Cavafy no qual ele imagina as pessoas de uma antiga cidade, ao exemplo de Alexandria, esperando todos os dias que os bárbaros venham saqueá-la. Finalmente os bárbaros se mudam para outro lugar e a cidade é salva. No entanto, o desapontamento das pessoas é geral: o saque teria sido melhor do que nada!”.

Assim, das reações que testemunhei na internet —mesmo na ausência de provas—, houve quem insistisse ser o incêndio de iniciativa criminosa. Devendo ser tratado como um atentado contra a cristandade. Enquanto outros se valeram de citações bíblicas para alimentar delirantes relações de causa e efeito entre esta tragédia e a decadência moral do ocidente.

No Twitter, Filipe Martins, assessor do presidente Jair Bolsonaro para assuntos internacionais, utilizou-se de uma passagem do Evangelho de Lucas (19:40) como legenda para uma imagem da catedral em chamas: “E, respondendo ele, disse-lhes: Digo-vos que, se estes se calarem, as próprias pedras clamarão”.

Talvez porque na semana passada eu estivesse estudando sobre o tratamento do mal na tradição literária alemã ou porque, no mesmo dia do incêndio, houvesse recebido a mensagem do falecimento de um antigo professor —Marcelo Dascal, estudioso da obra de G.W. Leibniz—, a reação de Martins despertou-me a lembrança de uma cena em "Cândido ou o Otimismo", de Voltaire.

Nela, na tentativa de buscar um bode expiatório pelo terremoto de Lisboa em 1755, ditos sábios portugueses teriam convocado um gigantesco auto de fé, a espalhar o medo entre os lisboetas e carregar para a fogueira qualquer um cujas atitudes lhes parecessem suspeitas de grave ofensa contra a moral cristã, supostamente responsável por manter a terra presa ao chão.

Uma atitude desesperada e oportunista que de nada adiantou. Pois, diz o narrador: “No mesmo dia a terra tremeu de novo, com espantoso fragor”.

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