Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Elena Ferrante e o desafio de conhecer-se a si mesmo

Escritora lança reflexão sobre descompasso entre emoções dos indivíduos e seus alinhamentos ideológicos

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Ao retratar o desfecho do relacionamento entre as personagens Lenu e Nino Sarratore, em "História da Menina Perdida", a escritora Elena Ferrante lança uma reflexão sobre o descompasso entre as emoções do indivíduo e os seus alinhamentos ideológicos. Ressalta a importância do autoconhecimento e da observação integral do homem para que tenhamos a chance de entender as motivações que informam a nossa atuação em sociedade.

Em "História de Quem Foge e de Quem Fica", romance que antecede "História da Menina Perdida" na Série Napolitana, Nino reaproxima-se da sua antiga vizinha de bairro e colega de ginásio ao se mostrar sensível ao anseio das mulheres por igualdade e reconhecimento.

Cada vez mais envolvido com a política e os protestos estudantis da década de 1960, ele reclama incessantemente dos posicionamentos conservadores do marido de Lenu, que, além de não apoiar as demandas dos estudantes, não divide as responsabilidades domésticas e familiares com a mulher, deixando-a com muito pouco tempo para a escrita de um novo livro e para o trabalho intelectual.

Durante um jantar com o casal, ele assevera: “Uma comunidade que acha natural sufocar com o cuidado dos filhos e da casa tantas energias intelectuais femininas é inimiga de si mesma e não se dá conta.”

Entretanto, à medida em que o relacionamento entre Nino e Lenu se desenvolve, fatos sobre a vida familiar do amante vêm à tona, demonstrando que a sua simpatia pelo pleito das mulheres era bastante confusa pela incapacidade de Nino em confrontar a si próprio e impor limites aos seus desejos de dominação e poder.

Assim, diz-nos Lenu: “Nino se entusiasmava sinceramente pelo modo como as mulheres buscavam a si mesmas. Não havia jantar em que não repetisse que pensar junto com elas era, agora, a única saída para um verdadeiro pensar. Mas mantinha os seus espaços e suas numerosas atividades bem protegidos, punha em primeiro lugar sempre e apenas a si mesmo, não cedia um instante de seu tempo”.

Embora essa discussão não seja parte do tema central do romance, os principais acontecimentos políticos dos últimos anos levam a crer que o descompasso entre as nossas emoções e posicionamentos caracteriza boa parte das nossas escolhas e práticas cotidianas.

No campo político, essa desarmonia se revela na medida em que as demandas do politicamente correto e as diversas narrativas sobre as guerras culturais tendem a induzir uma adesão irrefletida, passando a suprir uma necessidade do indivíduo de sentir-se moralmente autorizado para impor sua opinião e seu estilo de vida.

Um exemplo recente de tal imposição foi a tentativa de estudantes norte-americanos em exigir que a escritora e polemista Camille Paglia fosse desligada da universidade onde trabalha a mais de 30 anos, por ela expressar ideias sobre sexo, identidade de gênero e violência sexual que questionam muitas das crenças contemporâneas.

Até que ponto temos conhecimento dos reais motivos que nos levam a viver de um certo modo e a empunhar determinadas bandeiras? Esses motivos nem sempre são tão claros e objetivos como gostaríamos que fossem, bastando observar a fragilidade dos argumentos que utilizamos para justificar determinadas escolhas e, assim, notar o quanto desconhecemos a nós mesmos.

Dito isto, algumas expressões literárias e filosóficas dos séculos 18 e 19 chamam a atenção para o fato de que nem sempre podemos nos dizer senhores das motivações que norteiam as nossas decisões. Para escritores como Karl Philipp Moritz, autor do romance autobiográfico "Anton Reiser" —recentemente publicado em português pela Editora Carambaia— e editor da revista de psicologia empírica Gnothi Seauton (Conhece-te a Ti Mesmo), as nossas motivações permanecem em larga medida estranhas a nós mesmos.

Na apresentação de seu projeto de psicologia empírica —em alemão, Erfahrungsseelenkunde— , Moritz dá-nos a entender que os motivos para a atuação do homem no mundo revelariam uma incessante dinâmica entre o gostar de si mesmo e a necessidade de agradar ou perceber-se refletido em uma pessoa, em um grupo ou mesmo em uma ideia.

Nesta apresentação, ele explica que a vocação do homem para a imitação ou para a reprodução de comportamentos e atitudes é um dos principais obstáculos para que se atinja qualquer grau de conhecimento sobre a alma humana. Isso faz com que sejamos prejudicados na capacidade de refletir sobre o jogo de ambivalências que constitui a nossa própria identidade.

Isto posto, voltemos a Nino. Estaria ele mentindo ao se declarar solidário a luta das mulheres por maior independência? Seria o seu feminismo parte de uma estratégia consciente de sedução?

De primeiro plano, estes questionamentos inspirados no personagem são relevantes para as mulheres se situarem nos seus relacionamentos íntimos e profissionais com homens que se identificam publicamente com os ideais feministas, mas que agem de maneira contraditória. De segundo plano, tais questionamentos também devem extrapolar os limites do debate feminista para revelar as limitações de todo posicionamento político e ideológico tomado de forma genérica ou abstrata.

Na vida e na literatura, existem homens inescrupulosos o suficiente para se utilizar do feminismo enquanto estratégia de sedução. No caso específico de Nino, creio que ele não estivesse inteiramente consciente disto. Afinal, observa Lenu: “Nino era aquilo que não gostaria de ser e, contudo, sempre tinha sido.” Ironicamente, o que caracteriza o relacionamento de Nino com as mulheres não é a malícia, mas sim a ingenuidade. Vindo a corroborar a tese de outra personagem, Lila, para quem toda mesquinhez e egoísmo expressos por Nino em seus relacionamentos seriam reflexos das suas tentativas de fuga de si mesmo e, consequentemente, da sua superficialidade.

Com esta análise fica patente o gênio de Ferrante para retratar as nuances do comportamento humano e para identificar um dos maiores problemas da nossa época: o superficialismo.

Portanto, embora tenhamos a propensão de transformar os nossos adversários em monstros, creio que, para finalmente derrotá-los, talvez seja melhor emprestar-lhes contornos humanos, para que, ao mesmo tempo em que nos seja revelada a superficialidade dos seus posicionamentos e todas as suas deficiências de caráter, nós também tenhamos a chance de conhecer melhor a nós mesmos, evitando o risco de nos comportarmos como os nossos próprios opositores.

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