Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Apesar de positiva, leitura também pode nos colocar em apuros

Como bem demonstram personagens literários, livros podem nos deslocar da realidade

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Em final de semana de feira literária, nós, leitores, sentimo-nos entusiasmados em participar de debates sobre os mais recentes lançamentos do mercado editorial e de usufruir um pouco, quem sabe, da presença dos nossos escritores prediletos.

Como se a clarividência de um renomado autor pudesse ser compartilhada por simples contato físico, a reprisar o momento em que “...o Eterno Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o alento da vida”.

A "Bíblia Hebraica"um dos textos mais antigos da civilização ocidental, dá o testemunho do fascínio do homem pela palavra escrita. Primeiro, ao relatar como Deus haveria criado o mundo a partir de uma simples elocução: “Haja luz!”. Depois, ao entregar a Moisés uma leva de tabuletas contendo a redação dos conhecidos dez mandamentos.

Hoje, no entanto, veio-me a lembrança outra passagem bíblica, desta vez a informar a crença de que os livros possam incentivar o progresso.

Refiro-me ao momento em que o profeta Ezequiel engole um pergaminho repleto de lamentações, tornando-se assim capaz de reproduzir a mensagem divina para o povo de Israel: “Que teu estômago degluta e se preencha o teu ser com este rolo que Eu te dou!”. O profeta assim o fez e acrescentou: “O seu paladar, em minha boca, tinha a doçura do mel.”

No judaísmo, esse trecho serve de inspiração para uma antiga cerimônia de iniciação às letras documentada pelo rabino Eleazar de Worms em "O Livro do Perfumista".

Segundo o relato, era costume entre os judeus alemães do século 12 realizar uma cerimônia semelhante à nossa formatura do ABC, em que as crianças recitavam o alfabeto hebraico em troca de um pouco de mel. Isso dava-lhes a impressão de que, embora todo aprendizado seja árduo, o conhecimento rende frutos mais doces que os da ignorância.

Tanto essa pequena celebração como a história de Ezequiel chamam atenção para uma constante imagem na vida de um leitor, cujo desejo por conhecimento faz-se análogo à fome.

Assim, não raro costumo dizer que minha melhor amiga, Jessica, é uma devoradora de livros, e que tive a sorte de crescer entre adultos que souberam estimular o meu apetite pela leitura.

Pergunto-me, no entanto, se nosso relacionamento com os livros há de sempre repercutir em consequências positivas. Afinal, como bem demonstram algumas das mais famosas personagens da literatura universal, a leitura também pode nos colocar em sérios apuros, tornando-nos cada vez mais deslocados da realidade.

Exemplo disto é Dom Quixote obcecado por velhas histórias de cavalaria. De maneira semelhante, o jovem Anton Reiser — tema da minha coluna anterior— também deixa-se levar pelo mundo dos romances, incorporando passagens inteiras de livros como "Os Sofrimentos do Jovem Werther".

Em "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", Goethe discorre sobre os riscos e problemas associados à leitura: a solitária Bela Alma, cujo apego por narrativas religiosas confunde-se às suas fantasias;o irrequieto Friedrich, que usa da leitura como exercício de memória, tornando-se, mais tarde, uma espécie de repositório humano de informações; e Mignon, cujas tentativas de aprendizado revelam a total confusão dos seus sentidos.

No entanto, o autor também ressalta a importância da leitura para o bem-estar das pessoas em situação de vulnerabilidade, ao exemplo do próprio Wilhelm Meister, cuja leitura de Shakespeare torna-se essencial para o seu processo de amadurecimento. 

A partir de Cervantes, todos esses escritores parecem ter notado que o desenvolvimento das tecnologias relacionadas à escrita —tal a adaptação de Gutenberg para a prensa de tipos móveis— acabou por gerar um ambiente de predomínio da leitura em nossas vidas, em que muitas vezes carecemos de ferramentas interpretativas suficientemente desenvolvidas para interagir com determinados conteúdos e responder à velocidade da divulgação de novos conhecimentos.

Em maio, um podcast da BBC Radio Four abordou alguns dos sentimentos que inspiram o crescimento do apoio popular ao movimento antivacina. Neste, a antropóloga Heidi Larson esclarece que muitos dos pais que optam por não vacinar os filhos pequenos seguem crenças ou estilos de vida cujas superstições são revalidadas pelo amplo compartilhamento online de interpretações enviesadas de textos científicos.

Aqui, portanto, faz-se necessário questionar se o reaparecimento de opiniões obscurantistas, tanto no campo das ciências, tal o sentimento antivacina e o terraplanismo, como no campo político, a alimentar os mais diversos atavismos e preconceitos, não seria mais um capítulo da prolongada crise dos saberes que caracteriza o sujeito moderno na literatura.

Quem sabe o nosso fascínio pelas letras seja capaz de encontrar uma cura para os mesmos distúrbios literários que houvera sido capaz de criar. Para tanto, recomendo que fiquemos atentos ao conselho do Doutor Bagster em "Uma Clínica Literária", texto do ensaísta norte-americano Samuel McChord Crothers responsável por cunhar a expressão "biblioterapia".

Ora, diante dos sintomas da nossa época, parece-me urgente propor que, além de avaliarmos a qualidade de um texto pelas suas virtudes estéticas e informativas, devamos também levar em consideração os seus efeitos no nosso comportamento.

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