Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Karl Philipp Moritz estuda a melancolia a partir da modernidade

'Anton Reiser' analisa a formação de uma personalidade com tendência à autopunição

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Dentre os meus escritores prediletos, existem os que me acompanham desde a infância, tal Monteiro Lobato e José Lins do Rego. Outros descobri aos poucos, a partir da adolescência, em uma tentativa de ordenar meus pensamentos a buscar uma explicação para a condição humana.

Com o passar dos anos, alguns dos autores que marcaram a minha juventude —ao exemplo de Sartre e Simone de Beauvoir— foram perdendo um pouco do encanto inicial, enquanto outros reconquistaram o meu interesse; como Goethe, cuja obra tornou-se objeto do meu doutorado.

Uma das características que me atraem em um escritor é sua capacidade de universalizar a experiência individual. Como se as situações enfrentadas por suas personagens oferecessem uma perspectiva sobre nossas próprias vidas. Outra é sua aptidão para o diálogo com tradições literárias; o que nos permite ampliar cada vez mais o universo das nossas leituras.

Lembro que a primeira coisa que fiz ao começar a ler Sartre e Beauvoir foi consultar o velho manual "Lagarde & Michard" para saber em que contexto deveria localizar suas criações; afim de encontrar, quem sabe, autores com temas semelhantes. A partir daquele momento, meu interesse pelo existencialismo transformou-se em algo mais enriquecedor, provocando-me o interesse pela filosofia e a literatura francesa da primeira metade do século 20.

Algo semelhante aconteceu quando comecei a estudar Goethe com maior profundidade, em busca de explicações para uma série de fenômenos de época, abordados em seus textos, tal a compulsão por leitura que acomete o jovem Werther.​

crânio
Crânio preservado do poeta e escritor Johann Wolfgang von Goethe, autor de "Os Sofrimentos do Jovem Werther" - France Presse

Uma espécie de patologia literária provocada pelo avanço da indústria editorial a partir do século 18, a permitir o acesso do público leitor a uma quantidade de obras sem precedentes. Isso substituiu a leitura intensiva de poucos textos antigos ou de cunho religioso pela leitura extensiva e corriqueira de novos romances, narrativas de viagem e artigos de opinião.

Foi a partir da investigação deste fenômeno em Goethe que acabei descobrindo Karl Philipp Moritz, que aos poucos conseguiu se fazer notar por seus estudos sobre estética e psicologia entre os escritores alemães daquela época. Sua obra é um dos principais canais para a divulgação de teorias como a psicossomática, o associacionismo e a psicologia do desenvolvimento.

Uma prova do talento de Moritz para a observação psicológica está no romance autobiográfico "Anton Reiser", obra em que ele analisa o papel da religião e da miséria econômica na formação da sua personalidade que, apesar de muito ambiciosa e perspicaz, sempre o fazia entrar em conflito consigo mesmo a ponto de desenvolver estratégias inconscientes de autopunição.

Ou, como registra o professor Márcio Suzuki no posfácio da sua recente edição brasileira: “Anton (...) complica excessivamente o seu modo de pensar e agir, a ponto de sentir o dissabor mesmo naqueles instantes em que sua alma pôde se extroverter, porque a expectativa era sempre superior a qualquer realização, e acabava, justamente por isso, numa frustração ainda maior.”

Originalmente publicado em quatro partes, enquanto Moritz editava a Revista de Psicologia Experimental, "Anton Reiser" deve ser apreciado como um estudo sobre a melancolia, o desenvolvimento e a expressão de sintomas neuróticos a partir da experiência da modernidade. Ao exemplo do que observa o biógrafo de Moritz, Mark Boulby, sobre obsessão de Anton por temas filosóficos que lhe provocavam uma perplexidade entre o tédio e o horror.

Em um importante episódio do livro, Reiser gasta horas a meditar sobre relação entre mente e corpo, bem como sobre a possibilidade de dividir o todo em partes individuais cada vez menores, desesperando-se ao perceber que estaria irremediavelmente limitado e confinado em si próprio.

Desperta em si o medo da morte que lhe perseguia desde a infância, quando “imaginou que cessava completamente de pensar e sentir, encontrando-se numa espécie de aniquilação e falta de si mesmo que o enchia de pavor e sobressalto todas as vezes que voltava a pensar intensamente nisso.”

Além de refugiar-se em reflexões filosóficas, Reiser —ou seja, o próprio Moritz— revela-se um compulsivo leitor de romances sentimentais. Dentre eles, "Os Sofrimentos do Jovem Werther", ao ponto de identificar-se com as palavras do autor em detrimento da expressão dos seus próprios sentimentos.

Em "Anton Reiser", a leitura compulsiva funciona como um mecanismo de defesa contra os sentimentos de inferioridade e isolamento social, ao mesmo tempo em que ganha proporções de vício, fazendo com que o personagem passe por uma série de privações e vexames.

Diz Moritz: “Para [Anton], a necessidade de ler tinha prioridade em relação a comer, beber e vestir-se (...) No entanto, essas eram as horas mais felizes, nas quais, por assim dizer, ele se desprendia da confusão das outras —sua capacidade de pensar estava como que perfeitamente embriagada, e ele se esquecia de si e do mundo."

"Reiser" é um romance riquíssimo tanto para quem se interessa por história e cultura alemã como para quem busca desbravar os labirintos da alma. Assim, ao acompanhar as experiências do protagonista temos a oportunidade de refletir sobre a necessidade de trabalharmos nossas emoções, para que a vida não nos mantenha reféns de situações cada vez mais degradantes, reforçando a crença de que talvez tenhamos nascido sob um signo desafortunado.

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