Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Literatura de séculos passados ajuda a compreender dilemas atuais

Beauvoir usou tragédia 'Antígona' para analisar o quadro político da França na ocupação militar alemã

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Em 2003 a escritora norte-americana Susan Sontag esteve na Feira do Livro de Frankfurt para receber o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão.

No seu discurso de aceitação, Sontag fez uso da literatura para questionar antigos mitos sobre as diferenças culturais entre os Estados Unidos e a Europa, como a ideia de que os americanos seriam os representantes de um novo mundo pleno de energia e tolerância, enquanto os europeus pertenceriam a uma ordem política em declínio, caracterizada pela malícia e o desmedido apego aos velhos privilégios coloniais.

susan sontag diante de estante
A escritora americana Susan Sontag (1933-2004), na França - Jean-Régis Roustan - 3.nov.1972/Roger-Viollet

Tema recorrente em vários romances de Henry James, ao exemplo de "Retrato de uma Senhora" e "As Asas da Pomba", livros em que a generosidade das personagens norte-americanas é interpretada como um sinal de fraqueza pelos seus convivas europeus que enxergam na ingenuidade das suas maneiras uma oportunidade de lhes passar a perna.

No entanto, Sontag chama atenção para uma interpretação ainda mais sombria dessa diferença cultural que ela descreve como um desdobramento inconsciente da velha querela filosófica entre antigos e modernos. Ou seja, da disputa entre aqueles que se atêm à tradição e aqueles que desejam subvertê-la.

Para tanto, ela cita o britânico D.H. Lawrence em "Estudos sobre a Literatura Clássica Americana", no qual o autor vê nos Estados Unidos a formação de uma antítese ao modelo europeu, a ressaltar a impossibilidade de construirmos algo novo sem destruir o que é antigo.

Ora, diz a ensaísta: “Lawrence intuiu que a América estava em uma missão de destruição da Europa, utilizando-se da democracia —particularmente da democracia cultural e de costumes— como instrumento. E, quando esta missão estiver concluída, ele prossegue: A América pode muito bem se transformar de uma democracia para qualquer outra coisa. (O que esta coisa pode ser talvez esteja prestes a emergir.)”

O que mais chama a atenção neste discurso de Sontag é a perspicácia da autora ao diagnosticar, em um momento político nascente, as consequências que pouquíssimos dos seus contemporâneos foram capazes de antever. Ora, quem poderia prever em 2003 que nos seguintes 16 anos assistiríamos à ascensão de Donald Trump à Casa Branca, bem como o brexit e a investidura de Boris Johnson como primeiro-ministro britânico?

Quem se atreveria a dizer naquela época que o multiculturalismo estava em crise e que, em um futuro não muito distante, seríamos testemunhas do acirramento de posicionamentos ideológicos a alimentar suspeitas sobre Deus e o mundo, sobre a ciência e, principalmente, sobre as instituições democráticas que servem de base para a preservação das nossas liberdades individuais.

Como bem disse o escritor Howard Jacobson em sua mais recente participação no programa A Point of View, da BBC Radio 4, quem poderia imaginar que viveríamos um período de tribalização da retórica política e da linguagem cotidiana, a impedir cada vez mais qualquer chance de mediação entre pontos de vista distintos?

Embora o descompasso moral da esquerda progressista e a ascensão dos novos conservadores cause perplexidade, tal situação encontra diversos precedentes históricos. Podemos nos valer da literatura dos séculos passados para compreender um pouco mais dos dilemas da nossa época. Ressalta Sontag no seu discurso de premiação: “Uma das funções da literatura —daquela literatura importante ou necessária é profética.”

Assim, não causa surpresa que a escritora e filósofa existencialista Simone de Beauvoir tenha-se utilizado da antiga tragédia "Antígona" para analisar o complexo quadro político da França em consequência da ocupação militar alemã. Ou que hoje possamos remontar tanto à criação de Sófocles como à leitura de Beauvoir para refletir sobre como devemos nos conduzir com discernimento ante os desafios morais impostos pelo momento político.

Em um ensaio de 1945, "Idealismo Moral e Realismo Político", Beauvoir observa que as personagens principais da trama de Sófocles representariam as atitudes políticas dos seus contemporâneos franceses.

Alguns —ao exemplo dos pacifistas— imbuídos de um espírito puramente idealista, caracterizado por sentimentos de impotência diante da necessidade de se tomar decisões urgentes e muitas vezes contrárias às suas expectativas morais. Outros, instigados por um realismo grotesco, seja a rechaçar a demanda de grupos menos favorecidos por transformações sociais, seja a justificar os exageros da violência revolucionária, como os membros da elite conservadora e do Partido Comunista.

Posto isto, diz Beauvoir: “Antígona" é o protótipo daqueles moralistas intransigentes que, ao desprezarem os bens terrenos, proclamam a necessidade de certos princípios eternos; insistindo a todo custo em manter a pureza das suas consciências, mesmo que ao preço de suas próprias vidas ou de vidas alheias.

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A atriz Andrea Beltrão em cena do espetáculo "Antigona", em Curitiba - Lenise Pinheiro - 5.abr.2017/Folhapress

Creonte encarna o realista político apenas preocupado com os interesses do Estado e pronto para defendê-los por todos os meios possíveis. Este conflito permanece vivo durante toda a história, com nenhum dos lados a conseguir convencer o outro da validade dos seus princípios: cada lado feito refém do seu próprio sistema de valores, em nome do qual se rejeita o do adversário.”

Nestes primeiros sete meses de governo Bolsonaro, bem como nos três anos que se sucederam à guinada direitista das políticas inglesa e norte-americana, não faltou quem protestasse pela tomada de lado de amigos e familiares, transformando o convívio social em um verdadeiro campo de guerra.

A justiça e a retidão moral nele deveriam estar condicionadas por uma fé inabalável naquilo em que cada lado, em disputa por validação e poder, acredita representar os imutáveis valores de uma civilização, a necessidade histórica ou até mesmo o futuro de uma ideia.

Pergunto-me até que ponto esse tipo de convocatória contribui para o emprego da crítica e do bom senso entre os participantes de uma disputa. Ao compor o prólogo para a sua versão de "Antígona", Millôr Fernandes adverte que nada é mais difícil para o homem do que escolher o lado em que lutar. No entanto, o que eu observo desta trama é que devemos combater a ingenuidade dos nossos impulsos políticos.

Segundo Beauvoir, tanto o idealismo de Antígona como o realismo de Creonte são problemáticos. Afinal, nenhuma dessas personagens parece levar em consideração que, ao afirmarem determinados valores, cada uma das suas ações podem causar alguma espécie de dano irreversível ao próximo. Ora, para evitarmos uma tragédia não basta tomarmos partido, fazendo-nos cada vez mais necessário aprendermos a atuar com lucidez e responsabilidade.

Em vista disto, adverte a filósofa: “A ética não é uma coleção pronta de valores e princípios. Sim, o constante movimento a partir do qual esses valores e princípios são postulados; o movimento que o homem autenticamente moral deve reproduzir para si mesmo."

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