Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Desumanização da velhice mostra deficiências de nosso sistema cultural

Segundo Beauvoir, velho é o indivíduo que percebe as crescentes limitações do seu corpo na realização da liberdade

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Em recente entrevista para o podcast Ilustríssima Conversa, a pesquisadora Giselle Beiguelman comenta a problemática relação do Brasil com sua memória, pontuando a discussão com reportes sobre os deslocamentos de monumentos emblemáticos da cidade de São Paulo, enquanto provoca o debate sobre as intervenções que têm por objetivo mascarar o desgaste de ambientes urbanos.

Segundo Beiguelman, projetos como o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, demonstram como a primazia do digital no campo da arquitetura e do urbanismo arrisca elidir o registro da passagem do tempo que caracteriza as cidades enquanto espaços de convivência, tensão e disputa social.

A discussão suscita uma reflexão sobre a mentalidade do nosso século, ao comparar a proposta do museu carioca —o amanhã é agora— com o sucesso de aplicativos para celular como o FaceApp, a partir do qual os usuários podem simular o próprio envelhecimento sem precisar acumular as marcas que emprestam significado à experiência da velhice.

Beiguelman argumenta que a influência da digitalização na cultura do século 21 desperta no indivíduo a necessidade de preservar a memória de um futuro hipotético, ao mesmo tempo em que nutre a expectativa de que tanto os espaços urbanos como os nossos corpos permaneçam intactos, em uma descaracterização da temporalidade.

O comentário da pesquisadora sobre o FaceApp remonta a leitura de Sigmund Freud, que chama a atenção para o fato de que, mesmo naqueles momentos em que aceitamos a morte como natural consequência da vida, procuramos negar sua inevitabilidade em nossas existências como se esta fosse algo que só acontecesse aos outros. Diz o psicanalista: “No inconsciente cada um de nós está convencido da sua imortalidade.”

Dedução aplicável às nossas reações ante a velhice. Nem tanto no sentido de que esta nos aproxima do inevitável fim da matéria, ao qual todos estão sujeitos. Mas no sentido de que o nosso comportamento em relação ao velho seria uma expressão daquela primordial ambivalência em relação à mortalidade, que nos torna cientes do vasto abismo que separa a percepção que possuímos de nós mesmos da que os outros possuem de nós.

Vindo ao remate o que poeta J.W. von Goethe teria dito ao seu secretário particular nos últimos anos da sua vida: “Naturezas geniais, fora do comum, vivem uma puberdade renovada, enquanto os outros são jovens apenas uma vez.”

Posto isto, por detrás dos cabelos grisalhos e das rugas que o aplicativo imprime em nossas fotos, confirma-se mais uma vez o horror que sentimos ao nos defrontarmos com o envelhecimento. Afinal, por tratar-se de uma simulação da velhice, o FaceApp nos mantém afastados desta realidade, em uma posição de espectador de uma senioridade hipotética, amplificando a falsa convicção que possuímos da juventude.

Em longo ensaio publicado em 1970 ("A Velhice"), Simone de Beauvoir disserta sobre este fenômeno por ela percebido como expressão da trágica ambiguidade que define a existência humana: a ideia que temos de nós mesmos, enquanto sujeitos, distingue-se da que os outros possuem de nós enquanto objetos.

Segundo Beauvoir, o velho é o indivíduo que, em virtude do contexto social, percebe as crescentes limitações do seu corpo como obstáculos para a realização da liberdade. Assim, a autora aponta para o fato de que durante a velhice, a nossa relação com o tempo sofre uma espécie de radical alteração.

Enquanto a estrutura social que criamos permite que os jovens, em pleno exercício da sua humanidade, projetem os seus desejos em um futuro distante, atribuindo novos valores à realidade, o velho vê-se preso a uma circunstância em que tudo o que lhe resta é reviver o passado, como se a ele não mais fosse possível realizar-se humano.

Beauvoir assevera que a desumanização da velhice não decorre propriamente do nosso eventual desgaste físico. Mas evidencia todas as deficiências de um sistema cultural e socioeconômico. Ao exemplo do que ela denuncia sobre as mulheres em obras como "Os Mandarins", "A Força das Coisas" e "O Segundo Sexo".

Neste último, diz:  “A história da mulher —pelo fato de se encontrar ainda encerrada em suas funções de fêmea— depende muito mais do que a do homem de seu destino fisiológico; e a curva desse destino é mais abrupta, mais descontinua do que a curva do homem. (...) As passagens de um período para o outro são de uma perigosa brutalidade (...). Enquanto o homem envelhece de maneira contínua, a mulher é bruscamente despojada de sua feminilidade. Perde, jovem ainda, o encanto erótico e a fecundidade de que tirava, aos olhos da sociedade e aos seus próprios olhos, a justificação de sua existência e as suas possibilidades de felicidade: cabe-lhe viver privada de todo futuro, cerca de metade de sua vida adulta.”

Embora a população brasileira esteja envelhecendo, ainda não oferecemos condições adequadas para os idosos que querem manter qualquer rotina de trabalho, estudo ou lazer, sendo em tudo inibidos ou preteridos —desde a consumação de desejos íntimos à produção cultural, e mesmo no exercício dos seus direitos fundamentais, como o de livremente ir e vir, afetado pela precariedade da mobilidade urbana.

Neste sentido, a mensagem de Beauvoir segue atual, revelando os mecanismos dos quais nos utilizamos para ignorar a desigualdade social que se acentua na velhice, produzindo um forte impacto na experiência dos nossos corpos maduros. Ressalta-se tanto as nossas deficiências adquiridas como todos aqueles outros elementos que, aos olhos da sociedade e aos nossos próprios olhos, cercearam a realização da nossa liberdade ao longo da vida.

Urge pensar seriamente a velhice, não podemos excluí-la das reais possibilidades do devir humano. De nada adiantando o botox existencial da cultura de massa, que apenas serve para mascarar a ansiedade diante de toda memória que o velho representa, sempre a influenciar no futuro das nossas realizações.

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