Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Trump vê sociedade como um corpo sadio sob ataque de invasores

Não é de hoje que a política faz uso do dicionário médico para justificar discursos segregacionistas

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Em suas respostas à recente chacina ocorrida na cidade de El Paso, no Texas, o presidente Donald Trump e o senador Bernie Sanders fizeram comentários que muito me chamaram a atenção, referindo-se ao quadro de saúde mental dos norte-americanos.

Na política, muitas vezes evoca-se a saúde mental como uma atenuante de responsabilidade. A exemplo de pronunciamentos oficiais sobre crimes de ódio e atentados cometidos por jovens de classe média, em que doenças mentais são elencadas com o propósito de justificar tais comportamentos, enquanto atos semelhantes perpetrados por jovens de reconhecidas minorias são tratados como ameaças à segurança nacional.

No entanto, o comentário de Sanders parece divergir deste lugar comum, caracterizando-se principalmente como diagnóstico para uma sociedade profundamente marcada pelo que Sigmund Freud qualificou como o mal-estar do indivíduo na civilização.

Nessa tese, Freud assevera carecer o ser humano de tempo para adquirir algum conhecimento de si e, assim, conquistar certo grau de autonomia. O autoconhecimento seria fator para que o indivíduo controle sua agressividade diante das restrições que a civilização impõe a seus impulsos naturais.

O ponto de vista de Sanders toma maior vulto diante do pronunciamento de Trump sobre a mesma tragédia, embora convirjam no objeto e distingam-se na ênfase. Ao passo que Sanders frisa um conceito de saúde, permitindo-nos questionar como a organização social do país interfere no bem-estar dos seus cidadãos, Trump faz referência à ameaça que a mente afetada representa para o devido funcionamento de uma sociedade que funcionaria muito bem caso fosse capaz de suprimir os seus dissidentes.

Diz o presidente: “(...) Temos que reconhecer que a internet é uma avenida perigosa para radicalizar mentes perturbadas e levar a cabo atos dementes (...). Em segundo lugar, temos de parar de glorificar a violência em nossa sociedade. Isso inclui os horrendos jogos de videogame que agora são comuns. É demasiado fácil, hoje em dia, que jovens problemáticos se rodeiem de uma cultura que celebra a violência (...) Temos que reformar nossas leis de saúde mental para melhor identificar indivíduos com problemas que possam cometer atos de violência. Sendo necessário que essas pessoas não só recebam tratamento, mas, quando necessário, sejam confinadas involuntariamente. As doenças mentais e o ódio puxam o gatilho, não a arma!”.

Em seu discurso, a ressaltar doenças mentais, perturbações e indivíduos doentes, Trump dá a impressão de que ainda não foi capaz de se despojar da retórica polarizadora adotada por ele durante a campanha eleitoral. Como se este e outros atentados fossem mote para sua retórica sobre a eterna batalha do bem contra o mal. O que, neste caso, traduz-se em uma contenda de indivíduos saudáveis contra loucos e perversos.

Não é de hoje que a política faz uso do dicionário médico para justificar discursos segregacionistas. No final da década de 1980, a escritora Susan Sontag chamava a atenção para como a epidemia de Aids nos Estados Unidos servira de pretexto para o preconceito e a violência contra homossexuais.

Segundo a autora, historicamente, a propagação em escala epidêmica de doenças como a sífilis, a tuberculose e a Aids "provoca uma espécie de queixa contra a indulgência e a tolerância, que passam a ser encaradas como frouxidão, fraqueza, desordem, corrupção: doença. Exige-se que as pessoas sejam submetidas a ‘exames’, que sejam isolados os doentes e os suspeitos de estar doentes ou transmitir a enfermidade, que sejam levantadas barreiras contra a contaminação —real ou imaginária— representada pelos estrangeiros".

Embora distúrbios mentais não sejam propriamente contagiosos e não se manifestem de acordo com a sintomatologia comumente utilizada para a detecção e tratamento das moléstias do corpo, Donald Trump identifica o massacre de Columbine, em 1999, como foco inicial de uma contaminação da sociedade norte-americana pelos males do espírito.

Impondo-se aqui, uma vez mais, a observação de Susan Sontag de que mesmo doenças não infecciosas como o câncer e, no caso em tela, os transtornos mentais, encontram-se vinculadas às metáforas de cunho moral, através das quais uma sociedade passaria a confundir tais doenças com o próprio mal —culpabilizando, assim, as “vítimas” em razão dos quadros clínicos.

Posto isto, a retórica de Trump pode ser vista como mais um reflexo da superada crença de que a sociedade seria um corpo sadio sob o ataque permanente tanto de agentes invasivos como das suas próprias células mutantes. O que revela perigosa superficialidade do discurso dos novos líderes tidos por conservadores, quase sempre a prescindir do bom senso e a desprezar o conhecimento cientifico, como acontece no Brasil com a questão do desmatamento.

Neste sentido, vale ressaltar alguns dos dados levantados pela jornalista Marina Dias em matéria para a Folha. Segundo ela, pesquisa realizada pelo FBI destaca que, dos 63 casos analisados de chacinas ocorridos entre 2000 e 2013, apenas 25% teriam sido cometidos por atiradores diagnosticados por profissionais de saúde como portadores de distúrbios psicológicos.

A mesma pesquisa ainda alerta para o fato de que “a doença mental diagnosticada de forma enfática não é um prenunciador muito específico de violência de qualquer tipo, muito menos de violência dirigida”.

Os dados do FBI também confirmam a declaração do presidente da American Psychological Association, Arthur C. Evans Jr., para o Guardian: “Culpar a doença mental pela violência armada em nosso país é [adotar um discurso] simplista e impreciso que vai de encontro às evidencias científicas atualmente disponíveis (...). Conforme os estudiosos da psicologia já disseram repetidas vezes, a grande maioria das pessoas acometidas de doenças mentais não são violentas (...). E não há qualquer perfil capaz de prognosticar o tipo de personalidade que poderá recorrer à violência armada.”

Não é minha função neste texto desacreditar o fato incontestável de que toda doença mental carece de tratamento adequado. Mas chamar a atenção para o fato de que, ao tentar simplificar um problema de tamanha complexidade, o discurso de Donald Trump não empresta qualquer solução à crise; sim, dificulta aos carentes, vítimas da ignorância, o acesso ao tratamento especializado.

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