Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Vida acadêmica da maioria das mulheres tem histórias de assédio

Mesmo aquelas que aparentam não ter sofrido agressão sabem boatos sobre professores e funcionários

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Em fevereiro, a Folha publicou longa matéria sobre os escândalos de agressão sexual que resultaram na demissão de três professores universitários da rede pública federal: José Henrique Organista, professor de ciência política da Universidade Federal Fluminense, acusado de assediar 16 alunas tanto por mensagens de conteúdo erótico como presencialmente; Américo José dos Santos Reis, membro do Departamento de Engenharia Agronômica da Universidade Federal de Goiás, por assédio contra quatro estudantes; e Rogério Elias Rabelo, docente em medicina veterinária da mesma instituição, pelo estupro de duas universitárias.

Munido dos testemunhos das vítimas que relatavam os pormenores das agressões e das declarações dos seus algozes que insistiam ter sido alvos de um golpe, o texto suscita uma reflexão sobre o que acarreta a inibição de um maior engajamento das mulheres na vida acadêmica.

Em 2015, uma pesquisa do Instituto Avon entrevistou 1.823 estudantes de todas as regiões do país sobre questões relativas à violência contra a mulher em ambientes acadêmicos.

Entre as 1.136 mulheres entrevistadas, 67% relataram haver sofrido algum tipo de agressão sexual, psicológica, moral ou física por parte de homens em uma instituição de ensino superior. Já 56% confirmaram assédio sexual por parte de professores, estudantes e técnicos administrativos, enquanto 36% admitiram deixar de participar de atividades na universidade por medo da violência.

Ilustração
Ilustração - Carvall

Em entrevista de 2018 para este jornal, a professora universitária Márcia Cristina Bernardes Barbosa, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, refere-se a esses mesmos dados para denunciar a violência contra a mulher no meio acadêmico enquanto fator de exclusão profissional.

Segundo Márcia Cristina, algumas mulheres deixam de se dedicar a áreas de pesquisa tradicionalmente associadas ao sexo masculino por medo de sofrer algum tipo de agressão, enquanto outras veem-se obrigadas a silenciar em relação à violência por temer represálias, como o corte de bolsas ou verbas e o isolamento dentro dos seus departamentos e nas demais comunidades acadêmicas em âmbito nacional.

Ao exemplo do que esclarece a entrevistada:

“Na universidade, em muitos momentos da carreira você é julgada por pessoas da mesma área, seja para concessão de uma bolsa, uma promoção, um prêmio. Quando uma pessoa assedia outra e esta não corresponde, ela passa a querer retaliar essa pessoa, e é isso que muitas mulheres temem. (...) Temos uma série de regras para os dados que produzimos e para os animais que usamos, mas não temos regras para o relacionamento entre as pessoas. (...) Nós ainda não nos demos conta de que quando abusamos de outro ser humano, estamos prejudicando a produção de conhecimento na ciência. (...) Ciência tem a ver com autoconfiança. Você precisa acreditar nas suas ideias. Como é que você pode acreditar em si mesmo, se a pessoa mais próxima de você, que deveria lhe formar, lhe ensinar, deixa claro que o que interessa a ele é o seu corpo?”

Este problema está longe de ser uma exclusividade brasileira. No entanto, surpreende-me que não receba maior destaque nas discussões nacionais sobre o ensino superior. Em suas colocações, Márcia Cristina ainda ressalta que a pesquisa do Instituto Avon seria uma das poucas fontes que temos para discutir o assunto. Declaração esta facilmente comprovada a partir de uma rápida busca na internet por artigos científicos e relatórios de pesquisas sobre as consequências do assédio e da violência contra a mulher em nosso contexto universitário.

Alguns textos, no entanto, exploram as consequências gerais do assédio, tanto moral como físico, no ambiente acadêmico profissional, corroborando as declarações da professora. Exemplo disto é o trabalho dos pesquisadores Thiago Soares Nunes e Suzana Rosa Tolfo, da Universidade Federal de Santa Catarina; publicado em 2015 pela Revista de Ciências da Administração.

Nele, asseveram os autores, com fundamento em José Buendía da Universidade de Murcia, que “(...) a estrutura organizacional das universidades favorece a ocorrência do assédio, uma vez que ela é obsoleta, rígida e extremamente burocratizada, com muitos espaços de poder, com poucas pessoas que detêm cargos importantes e se utilizam deles para se sobrepor aos demais.”

Contudo, nada do que eu pude encontrar online sobre a situação brasileira chega a ser tão detalhado como o recente relatório sobre o assédio sexual encomendado pelas agências norte-americanas de ciência, engenharia e medicina.

Sugerem, dentre outras coisas, que: “As instituições deveriam reformar o seu sistema de orientação acadêmica para que estudantes e pesquisadores iniciantes não dependam de um único pesquisador mais experiente para o avanço profissional e acesso a verbas de pesquisa.”

Nas principais universidades dos Estados Unidos, uma em cada dez estudantes de doutorado alegam terem sido vítimas de assédio sexual por alguém do corpo docente. Pergunto-me, portanto, quais seriam os números em relação aos programas de pós-graduação no Brasil.

Como bem ilustra a matéria da Folha, as consequências desse tipo de agressão repercutem nos destinos profissionais das vítimas. No caso de duas alunas do Departamento de Engenharia Agrônoma da Universidade Federal de Goiás, uma delas refutou o convite ao estágio de pós-doutorado para evitar dividir o mesmo ambiente de trabalho com o seu agressor e a outra abandonou o mestrado, retornando a sua cidade natal, onde se isolou dos colegas de departamento.

Histórias como estas fazem parte da experiência acadêmica da maioria das mulheres que eu conheço. Afinal, mesmo aquelas que aparentam não ter sofrido qualquer espécie de assédio estão cientes de boatos sobre professores e funcionários que passaram dos limites em seus relacionamentos com as estudantes.

Da minha época de graduação, registro as advertências de colegas veteranas sobre o comportamento de um ou outro docente durante congressos e reuniões de departamento. O que agradeço por ter-me feito evitar situações extremamente desagradáveis.

Hoje entendo estar este tipo de violência diretamente relacionado ao abandono da vida acadêmica profissional por algumas das minhas colegas. Assim comungo das denúncias da professora Márcia Cristina Bernardes Barbosa, em recente depoimento para a revista da Fapesp: “Muitas mulheres já desistiram da ciência por causa desses cretinos. E sabemos quem são. Convivemos com eles todos os dias e não podemos fazer nada por falta de legislação.”

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