Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Por que ler uma biografia?

Surpreende que textos biográficos sejam tratados de forma tão displicente por leitores, críticos e acadêmicos

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No começo da minha vida em Israel, antes, muito antes da popularização dos smartphones e do barateamento das tecnologias de comunicação, quando para desabafar com os amigos e os familiares no Brasil precisávamos negociar pacotes de ligações internacionais com as empresas de telefonia ou torcer para que as nossas conexões de internet permanecessem estáveis durante as chamadas do Skype, readquiri um velho hábito de adolescência e passei a consultar as biografias de alguns dos meus escritores prediletos em busca de companhia, orientação e estímulo.

Dentre esses autores, busquei informar-me sobre a vida dos que seguiram trajetórias pouco tradicionais, transitando entre o universo acadêmico e a produção artística, o engajamento político e a criação de nichos de atuação profissional.

Senti-me particularmente atraída por personagens que questionaram as crenças das suas respectivas culturas ou que se viram obrigados a deixar os seus países de origem para se colocarem a salvo de conflitos e perseguições. Assim entendi, desde logo, que as lições que eu aprenderia com as suas experiências de emigração seriam fundamentais para o sucesso da minha empreitada a determinar, dentre outras coisas, a renovação do meu laço afetivo e profissional com a minha terra.

Em face disso, o primeiro livro que comprei em Tel Aviv foi “The Death of Sigmund Freud: The Legacy of His Last Days” pelo pesquisador norte-americano Mark Edmundson. O autor discorre sobre a fuga de Freud com a família para a Inglaterra e os estágios finais da sua doença, bem como das pressões que o psicanalista sofrera para não publicar o seu último livro, “Moisés e o Monoteísmo”, devido à crescente onda de violência contra os judeus nos países e territórios sob domínio nazista.

Em outra ocasião, inspirada por um comentário do cientista político Shlomo Avineri sobre a primeira tradução para o hebraico de “Origens do Totalitarismo”, quase 60 anos depois da publicação original, emplaquei a leitura de um volume sobre a controversa amizade de Hannah Arendt e Martin Heidegger por Daniel Maier-Katkin —“Stranger from Abroad: Hannah Arendt, Martin Heidegger, Friendship and Forgiveness”— a partir do qual tomei conhecimento da forte relação da escritora com o judaísmo e a literatura alemã, bem como do seu envolvimento e crítica ao movimento sionista.

O livro sobre Freud ensinou-me da importância de manter a calma diante das circunstâncias que fogem ao nosso controle. Afinal, a vitória da civilização sobre a barbárie depende da nossa capacidade para reconhecer adversidades e controlar nossos impulsos. Ensinou-me também da coragem que precisamos ter para desenvolver qualquer reflexão profunda sobre as nossas identidades e para reconhecermos o jogo de ambivalências que caracteriza nossa relação com as tradições que herdamos dos nossos antepassados.

Por sua vez, o texto sobre Arendt chamou-me a atenção para o papel da firmeza na experiência dos nossos afetos enquanto elementos da vida política e do nosso exercício intelectual, dando-me a oportunidade de ponderar sobre a minha experiência em Israel e de formar impressões concretas do país, a combater a ideia bastante equivocada de que a minha inadaptabilidade à cultura do Oriente Médio indicasse alguma falha na minha identidade judaica.

Depois disto tive acesso a outras biografias e amealhei novos companheiros de jornada como Lou Andreas-Salomé, Anaïs Nin, Simone de Beauvoir, Walter Benjamin, Stefan Zweig e Paul Celan. Todos me ensinaram um pouco mais sobre a vida, o compromisso intelectual e o valor da cultura.

Hoje algumas dessas leituras fazem parte do meu trabalho, ao exemplo dos inúmeros registros biográficos sobre Goethe aos quais recorri para desenvolver a minha tese de doutorado. Porém, sempre que possível, continuo a valer-me de biografias em busca de um modelo a seguir ou a evitar, como se o aprendizado dos erros, das experiências, das vaidades e das atribulações desses autores pudessem ajudar-me a refletir sobre os meus próprios dilemas.

Com relação a este meu esforço, o novelista e crítico literário John Updike comenta que as biografias nos permitem prolongar o diálogo com nossos escritores prediletos, renovando o nosso interesse pelos livros que marcaram as nossas vidas.

Nos últimos meses, com a leitura da recente biografia de Susan Sontag por Benjamin Moser, cheguei a uma conclusão semelhante. Enquanto as biografias que li no passado serviram, muitas vezes, de introdução à vida e a obra de um ou outro escritor, esta última pegou-me em um momento distinto.

Assim, durante a sua leitura, dei-me a chance de revisitar a obra de Sontag. Compreendi que à medida que avançasse na sua biografia, a complementaria com a releitura dos seus diários, ensaios, romances e entrevistas. Surpreende-me, portanto, que as biografias sejam tratadas de forma tão displicente por alguns leitores, críticos literários e acadêmicos.

Pergunto-me se tal reação é consequência do hibridismo deste gênero literário que apresenta informações documentais exaustivas sobre a vida e a obra do biografado e lança mão dos mesmos artifícios que despertam o nosso prazer em uma boa leitura de ficção. Neste diapasão comenta o escritor Michael Holroyd, renomado biógrafo do dramaturgo George Bernard Shaw: “A biografia aparenta ser o produto de uma estranha cópula entre a história à moda antiga e o romance tradicional.”

Afinal, de onde foi que tiramos a ideia de que um texto feito para a nossa instrução não deva ser igualmente prazeroso? Haveríamos de temer nos desinteressar pela obra de um autor por conhecer da sua vida? Ora, não seriam as lições que extraímos da sua produção e da sua biografia complementares?

Estas e outras questões foram debatidas em um ensaio de 1750 pelo célebre crítico e lexicógrafo Samuel Johnson, oportunidade em que ele aborda o poder das biografias em nos situar historicamente. Também nos chama a atenção para o fato de que qualquer biografado, independentemente da sua fama, permanece suscetível às perplexidades comuns a todas as pessoas.

Assim, insisto na lição deste sábio inglês: “Nenhuma espécie de escrita parece ser mais digna de cultivo do que a biografia; já que nenhuma pode ser mais prazerosa ou mais útil. Nenhuma outra pode, certamente, cativar o coração com irresistível interesse ou mais amplamente difundir a instrução nas mais diversas circunstâncias.”

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