Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

As lições de Sobel

Rabino passou a expressar, através do exemplo, contribuições do judaísmo para uma sociedade moderna e plural

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Na última semana de novembro, enquanto me ocupava em acertar os detalhes da minha visita ao Brasil e, nas horas vagas, perdia-me na deliciosa leitura de Isaac Bashevis Singer, deparei-me com duas notícias fortuitamente correlacionadas, como se um pobre diabo —um dibbuk— estivesse a pregar uma peça, instigando-me a concatenar as suas mensagens.

A primeira delas anunciava a morte do rabino Henry Sobel, admirado dentro e fora de círculos judaicos brasileiros e latino-americanos, tanto pelo seu corajoso ativismo durante o regime militar como pela sua atuação na Comissão Especial de Apuração de Patrimônios Nazistas, criada durante o governo Fernando Henrique Cardoso com o intuito de reparar as vítimas do Holocausto imigradas para o Brasil.

Embora não o conhecesse, sempre me chamou a atenção como Sobel fora capaz de firmar a sua imagem no destemor. Sabendo, por isso mesmo, representar a comunidade judaica dentro do amplo contexto social, a nos imprimir a autoconfiança necessária para assumirmos o nosso papel na vida política e cultural do país. 

Ao lançar-se na mídia, o rabino passou a expressar, através do exemplo, algumas das contribuições do judaísmo para a abertura democrática e o desenvolvimento de uma sociedade moderna e plural, cujo horizonte ético e religioso permanecera, durante muito tempo, encerrado em um contexto cristão predominante. 

Circunstância esta que ainda se faz notar em várias discussões atuais, sobretudo naquelas relativas aos direitos reprodutivos da mulher, em que muitas vezes os argumentos contra o aborto tendem a não levar em conta os diferentes matizes religiosos que compõem o complexo sistema de valores da sociedade brasileira. 

Queixa evidenciada em texto da professora da Universidade Estadual Paulista e cientista social Heloisa Pait, no qual ela propõe um argumento pragmático em defesa do direito ao aborto a partir das considerações de Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelita Paulista em audiência pública sobre o tema, realizada em 2018 no Supremo Tribunal Federal.

Ora, se nem toda religião oferece interpretações semelhantes para os mesmos impasses, acredito que a sociedade poderia beneficiar-se em saber dirimir questões a partir de perspetivas distintas, tal como suscitado por Sobel para se repensar o Holocausto com foco no discurso do papa Bento 16 durante sua visita a Auschwitz-Birkenau em maio de 2006. 

Oportunidade em que o papa questionou como o silêncio divino teria deixado os homens à deriva, permitindo que ocorresse semelhante tragédia: “Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado. Um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente, em nosso coração, face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.”

Já em sua réplica publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Sobel colocou-se de maneira a cobrar de todos os homens responsabilidade moral e política pelas origens e consequências de tamanha violência: “Antes de perguntarmos ‘onde está Deus’, cabe-nos formular a outra pergunta: ‘Onde está o homem?’ O que está fazendo o homem com o mundo que Deus lhe deu? (...) Onde estava a Igreja? Onde estavam as autoridades eclesiásticas, tão prontas para exaltar a santidade da vida humana, enquanto milhões e milhões de vidas inocentes estavam sendo aniquiladas? (...) Temos, certamente, o direito de perguntar onde estava Deus em 1940, mas temos o dever de perguntar, antes, onde estava o homem em 1940. O que poderia ele, homem, ter feito para impedir o inferno do Holocausto... e não o fez?”.

Em seu prefácio para a coletânea "Homens em Tempos Sombrios", a filósofa Hannah Arendt ressalta a importância do discurso no combate à indiferença política e ao sentimentalismo. Neste sentido, a diferença entre os posicionamentos de Sobel e Bento 16 residiria nas possibilidades das suas falas em reafirmar a função da esfera pública enquanto um espaço no qual os homens possam demonstrar por atos e palavras o que são realmente capazes de fazer. 

Assim, da mesma forma que o rabino alerta sobre a necessidade de cultivarmos uma parcialidade atenta em relação as atitudes humanas, Arendt chama a atenção para o fato de que, ao nos excluirmos de participação nos dramas que afetam a nossa comunidade, seremos novamente surpreendidos por catástrofes e eventos históricos que se alimentam de um tipo de discurso que, “sob o pretexto de sustentar antigas verdades, degradam toda a verdade a uma trivialidade sem sentido.”

A outra notícia espantou-me: denunciava o antissemitismo entre os nossos compatriotas. 

Depois de mais de 40 anos da missa ecumênica na praça da Sé, oportunidade em que o Brasil foi apresentado a Henry Sobel, quem seriam os judeus brasileiros para a nossa sociedade? Como o brasileiro vê esses concidadãos, seus valores, sua cultura e sua identidade nacional? 

Segundo matéria de Patrícia Campos Mello para a Folha, recente pesquisa realizada pela organização norte-americana Anti-Defamation League registrou um aumento de opiniões antissemitas em nossa sociedade nos últimos cinco anos.

Dos resultados da pesquisa, que podem ser consultados no site da organização, despertaram-me curiosidade: 55% dos entrevistados afirmaram não conhecer um único judeu; 70% acreditam que os judeus nutrem maior lealdade por Israel do que pelos seus países de origem; 63% afirmam que os judeus estão sempre falando do Holocausto; 39% diz não gostar dos judeus pela maneira como eles se comportam e 25% reputam responsabilidade aos judeus pela maior parte das guerras do mundo. 

Enquanto isto, símbolos judaicos e objetos rituais, bem como a bandeira de Israel, foram apropriados por segmentos das igrejas pentecostais e neopentecostais em uma dinâmica que, se por um lado, expressa a bricolagem característica do sincretismo religioso brasileiro, por outro, chama-nos a atenção para algumas das possíveis consequências políticas do dispensacionalismo evangélico. 

Em artigo de 2010 para a Revista Brasileira de História das Religiões, a pesquisadora Marta Francisca Topel da Universidade de São Paulo explica: “(...) Os dispensacionalistas não acreditam numa cisão entre a nação de Israel e a Igreja, isto é, o cristianismo: ambas constituem o povo de Deus e ambas serão salvas. Entretanto, um ponto deve ser lembrado: da mesma forma que o cristianismo de modo geral, os dispensacionalistas acreditam que no final dos tempos haverá um fluxo maciço de judeus ao cristianismo.” 

Ela também chama a atenção para o fato de que, no contexto pentecostal e neopentecostal, bem como entre os indivíduos que participam de igrejas messiânicas, a judeofilia tende a ser explorada a partir do estereótipo do judeu enquanto símbolo da prosperidade, muitas vezes caracterizado como uma minoria que deu certo. 

Diante de tamanha confusão, podemos considerar que, em suas reiteradas tentativa de fundar um diálogo entre os representantes de diferentes confissões religiosas, Sobel cumpriu importante papel em tirar o brasileiro da ignorância em relação à cultura judaica; a desmanchar expressões de antissemitismo. Dando-nos as necessárias ferramentas para nos defendermos em tempos obscuros. 

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