Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

Neste ano novo, pense!

Para Hannah Arendt, as liberdades de movimento e de pensar estariam correlacionadas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Dias atrás encontrei-me no Recife com um antigo colega de estudos para tomar um café às margens do Capibaribe e trocar reminiscências daquele longínquo período em que morávamos na mesma cidade.

Juntos relembramos todo o percurso que nos levou ao exterior pela primeira vez, imbuídos da vontade de nos tornarmos filósofos, ao mesmo tempo em que aprendíamos a lidar com os obstáculos e as decepções do mundo adulto.

Será que as questões relacionadas ao reconhecimento e à autonomia da mulher teriam me chamado a atenção, caso eu não tivesse vivenciado problemas desta ordem no meu cotidiano? Poderia a relação entre literatura e filosofia ter-me fisgado, caso eu não tivesse pretensão de tornar-me escritora?

Falamos sobre isso como se quiséssemos conferir uma espécie de materialidade aos conceitos filosóficos que informam o nosso trabalho, dando-nos a chance de refletir sobre o desenvolvimento do nosso modo de pensar a partir do tumultuado itinerário sugerido pelas experiências que amealhamos na última década.

Enquanto conversávamos, lembrei os nossos diálogos de juventude e as leituras que costumávamos sugerir um ao outro. Naquela época, para cada autor que discutíamos, tal Kant, Fichte e Hegel, eu alimentava o desejo de viajar e vivenciar outros idiomas em contextos sociais distintos, incorporando, desta forma, perspectivas capazes de desafiar os limites da minha atividade contemplativa, como se esta também fosse um território a ser explorado.

Estrada que leva para o Death Valley, na Califórnia
Estrada que leva para o Death Valley, na Califórnia - Leonardo Neiva/Folhapress

Recentemente, ao elaborar a ementa de um curso de graduação sobre o pensamento alemão de origem judaica, tive a oportunidade de reler alguns textos de Hannah Arendt e recordei-me de que, para a autora, as liberdades de movimento e de pensar estariam correlacionadas, tornando claro para mim o quanto eu pude crescer intelectualmente à medida que viajava de um lado para o outro do mundo a estudar, trabalhar e confrontar pontos de vistas os quais eu jamais teria tido acesso caso houvesse fincado raízes em minha própria terra.

Ao receber o Prêmio Lessing da Cidade Livre de Hamburgo, em seu discurso, Arendt remete à obra desse escritor alemão do século 18 para explicar como a mais antiga e fundamental liberdade que conhecemos —a de movimento— informa a expressão do livre pensar: “Para Lessing, o pensamento não brota do indivíduo e não é a manifestação de um eu. Antes, o indivíduo —que Lessing diria criado para a ação, não para o raciocínio— escolhe tal pensamento porque descobre no pensar um outro modo de se mover em liberdade no mundo”.

A partir desse comentário, Arendt apresenta a sua crítica à equivocada utilização do princípio da não contradição nos discursos ideológicos, a exigir do ser humano uma espécie de coerência que, inevitavelmente, coloca em xeque tanto a sua experiência de mundo como a livre marcha do pensar.

Ora, diz a autora: “[...] o famoso Selbstdenken —pensamento independente para a própria pessoa— não é de forma alguma uma atividade pertencente a um indivíduo fechado, integrado, organicamente crescido e cultivado que então, por assim dizer, olha em torno para ver onde se encontra no mundo o lugar mais favorável para seu desenvolvimento, a fim de se encontrar em harmonia com o mundo, através do rodeio pelo pensamento”.

Consequentemente, uma das contribuições do humanismo de Lessing consiste em nos chamar a atenção para a habitual tirania de todos aqueles que tentam reduzir o pensamento a um mero exercício argumentativo. A exemplo do que vemos ocorrer entre os adeptos das culturas de lacração e do cancelamento, bem como da leitura diagonal e tendenciosa de autores cujas contribuições ao pensamento são tratadas como munição do enfadonho cenário de guerra cultural que, ao invés de abrir espaço para o diálogo, encerra a todos nas suas próprias crenças.

Isto posto, em ensaio sobre o escritor e pensador austríaco Hermann Broch, Arendt adverte que: “Pensar não tem começo nem fim; pensamos enquanto vivemos, pois não podemos fazer de outra forma [...]. O que a filosofia chama de verdade é totalmente diferente da determinação correta dos fatos objetivamente dados no mundo ou dos dados de consciência; mas, também, as proposições provável e demonstravelmente corretas ainda não constituem a verdade —sejam elas governadas pelo axioma aristotélico da não contradição ou pela dialética hegeliana ou, como no caso da lógica de Broch, exclusivamente por seu conteúdo aparecer como obrigatoriamente necessário, isto é, autoevidente e, portanto, absolutamente válido”.

Durante a sua vida Arendt notara que o homem se comporta como um feixe de relações, sendo para ele difícil conservar-se fora de um determinado contexto social e afetivo, ao exemplo do que ela testemunhou quando foi detida com outras mulheres em um campo de refugiados em Gurs, na França.

Ao percebermos que os nossos movimentos podem ser interditados, reagimos de maneira a impedir que sejamos dominados pela inação, como se, ao sucumbirmos ao cerco, corrêssemos o risco de abrir mão da nossa própria humanidade. Mas como é difícil defender a nossa liberdade de pensamento quando ela aparenta estar sob ataque tanto das nossas carências, como de agentes externos, explorando nosso medo de lidar com a diferença e a incerteza!

À noitinha, finalmente, quando a brisa morna do rio e o ritmo viscoso da tarde recifense cederam ao nervosismo febril do engarrafamento de final de ano, despedi-me do meu colega com a sensação de que saíra enriquecida pela nossa conversa, desejando que reencontros como esse façam parte da rotina de todos, permitindo-nos a reflexão sobre a importância de manter nosso pensamento em liberdade, sem nos arvorarmos de haver encontrado verdade.

Ora, a exemplo do que escrevera Arendt ao historiador e filósofo Gershom Scholem, urge ao pensamento independente não ser suprimido por ideologias, a opinião pública ou qualquer outra espécie de convicção. Por isso, leitor, neste ano novo: pense!

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.