Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Goethe destacou a força da mulher em sua obra

Escritor mostrou-se sensível ao drama feminino de sua época por autonomia e realização

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No meu trabalho de pesquisa, trato da maneira como a obra literária de J.W. von Goethe (1749 - 1832) pode ser interpretada a partir de seus textos científicos, revelando, dentre outras coisas, maior sensibilidade do autor em relação ao debate sobre gênero e o drama das mulheres de sua época por autonomia e realização.

Essa sensibilidade encontra arrimo em um dos seus fragmentos sobre botânica, no qual Goethe observa que, para compreendermos as diferenças entre o masculino e o feminino, faz-se necessário observar a expressão de ambos em um mesmo organismo, tal ocorre nas plantas.

Com base neste e outros textos, a professora Astrida Orle Tantillo —autora de “The Will to Create: Goethe’s Philosophy of Nature”— relata que, em seu pensamento, Goethe distanciou-se da tradicional interpretação sobre existência de uma hierarquia entre os sexos, desenvolvendo a ideia segundo a qual a relação estaria pautada em uma dinâmica entre duas tendências com semelhante potencial de expressão em um mesmo indivíduo.

Quadro a óleo de J.H.W. Tischbein, de 1848, que mostra o escritor Goethe em sua viagem à Itália
Quadro a óleo de J.H.W. Tischbein, de 1848, que mostra o escritor Goethe em sua viagem à Itália - Reprodução

Segundo Tantillo, Goethe teria notado que: “Ao nos dedicarmos ao exame de indivíduos como nós, que geralmente parecem exibir apenas um sexo ou gênero, nos concentramos na observação de partes específicas do corpo e nas suas diferenças. As plantas nos dão a oportunidade de estudar tanto as semelhanças quanto as diferenças do par polar masculino e feminino. Elas também nos permitem rastrear o imenso impulso competitivo de cada força".

Para Goethe, todo organismo é definido como uma espécie de unidade na multiplicidade. Esta mesma formulação repete-se igualmente em sua caracterização do indivíduo humano que, ao buscar a própria realização, precisa encontrar a justa medida na expressão dos seus vários desejos e inclinações.

Em sua obra literária, esta máxima encontra a sua mais elevada expressão em personagens como a heroína de “Ifigênia em Tauros”, obra esta inspirada na tragédia homônima de Eurípides, na qual a filha do rei Agamenon é resgatada pelo irmão Orestes e o seu amigo Pílades.

Na mitologia grega, Ifigênia é sacrificada pelo seu pai, o rei de Argos e Micenas, a fim de propiciar a deusa Ártemis que deteve a frota grega no porto de Áulide durante a Guerra de Troia.

Seu drama é desenvolvido de diferentes maneiras em várias criações literárias do mundo grego. Em “Agamenon”uma das tragédias de Ésquilo a compor “A Orestéia” —, a morte de Ifigênia serve de gatilho para o assassinato do rei pela sua esposa, Clitemnestra. Já no texto de “Ifigênia em Áulide”, de Eurípides, quando o sacrifício de Ifigênia é ordenado por seu pai, a personagem é salva da morte pela própria deusa Artêmis, que substitui o corpo da menina por um cervo no altar do sacrifício.

Antes de escrever sobre o que acontecera à personagem em Áulide, Eurípides também foi autor do drama baseado no mito de Ifigênia entre os Tauros. Neste, a ação começa no reino de Táurida, como era conhecida antigamente a península da Crimeia, para onde ela é supostamente levada por Artêmis depois de ter sido resgatada do sacrifício.

A “Ifigênia” de Goethe é uma reformulação deste drama euripidiano e combina elementos do mito, tanto contados por Eurípides quanto recontados por escritores do século 18, como Claude Guymond de la Touche e Joan Elias Schlegel.

Porém, enquanto muitas das várias adaptações da sua época expunham o drama de Ifigênia sob o pretexto de enfatizar ora a bravura de Orestes, ora o culto da amizade masculina, Goethe,  em sua versão,  destaca o protagonismo da mulher.

Deixa claro que, para conseguir sair da situação em que se encontra e finalmente retornar para a sua terra natal após um longo exílio, Ifigênia terá de agir por contra própria e se insurgir contra a percepção do seu lugar no mundo pelos homens da trama, como deixa entrever este trecho do seu monólogo de apresentação:

"Como é bem tramado o destino da mulher!
Obedecer ao esposo rude já é
Dever e consolo; que miserável, quando
Ao longo dá impulso a um destino hostil!
Assim, Thoas me prende aqui, homem honroso,
Acorrentada em ferros duros e sagrados".

Para T.J. Reed, especialista em literatura alemã e professor emérito da Universidade de Oxford, a “Ifigênia” de Goethe representa um avanço em relação ao discurso da época sobre a mulher. Segundo ele, ao longo da peça a personagem supera tanto o receio de cometer uma injustiça em relação ao povo que lhe oferecera abrigo, como o medo de se posicionar ante a autoridade dos homens.

Neste processo, ela conquista maturidade para agir a partir da sua própria deliberação: “Quão mais difícil isso era para uma mulher, Goethe deixa claro. O fato de que a autonomia é vista por ele como um objetivo a ser alcançado pela mulher trata-se, portanto, de um avanço ético mesmo sobre Kant”.

Isto posto, vale a pena destacar que a sensibilidade de Goethe para tratar de assuntos relativos à condição da mulher não significa que ele tenha sido um feminista "avant la lettre".

No entanto, em um momento de retrocesso cultural como o nosso, em que antigos preconceitos contra as mulheres insistem em marcar presença na fala de algumas lideranças políticas e religiosas, faz-se necessário lembrar: no cânone literário ocidental, existem homens que, mesmo com todas as limitações de época, buscaram abraçar um outro tipo de mentalidade.

Em artigo sobre o que haveria de moderno ou de revolucionário na postura conservadora comumente atribuída à obra de Goethe, a pesquisadora norte-americana Jane K. Brown esclarece que a sua importância está em não sucumbir facilmente a qualquer tentativa de apropriação ideológica.

Embora Goethe sempre tenha procurado fomentar o diálogo entre a história alemã e a europeia, Brown adverte-nos de que, para ele, a história jamais se resumiu a um culto do passado, devendo ser igualmente encarada como a manifestação do presente.

A autora também escreve que, no final do século 18, a autoridade de tal manifestação estava sendo amplamente contestada e que isto acabou por influenciar o nosso entendimento de tudo aquilo que percebemos como moderno ou revolucionário.

Goethe foi parte deste movimento de contestação e, por isso mesmo, deve ser visto como um autor para quem o diálogo com a história e o conhecimento constitui a principal característica da sua modernidade.

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