Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Coronavírus

Primo Levi reproduz com clareza complexidade da vida em situações-limite

Obra do autor inspira crítica à situação de pobres durante pandemia de coronavírus

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Das tentativas de distanciamento social ao recente anúncio pelo governo irlandês de medidas de confinamento, passaram-se 23 dias. No começo, imaginávamos que a quarentena poderia chegar a 29 de março, data em que estava previsto o retorno das atividades escolares. Hoje, no entanto, sabemos que devemos permanecer em casa até o dia 12 de abril. Isto é, se nada de novo acontecer.

Muita coisa mudou em nossa rotina desde o início do confinamento. Até a última sexta-feira de março, era possível pedalarmos a esmo, desde que tomássemos cuidado para evitarmos o contato uns com os outros. Agora, além das precauções a que já nos habituamos, precisamos ficar atentos para não ultrapassarmos um raio de dois quilômetros das nossas casas.

Mais que qualquer outra coisa, as restrições de movimento fazem-nos perceber que a quarentena impõe um desafio a muitas das pretensões do homem sobre si mesmo, ao exemplo do que a filósofa Hannah Arendt ressaltou em seu discurso de aceitação do Prêmio Lessing de 1959, de evidente atualidade.

O escritor italiano Primo Levi (1919-1987) - Basso Cannarsa/AFP

Pois a possibilidade cada vez mais reduzida de decidirmos algo tão simples e fundamental como os limites do nosso deslocamento cotidiano denuncia, entre outras coisas, o risco que a liberdade de pensamento também corre nesta crise, já que a nossa atenção tende a se concentrar em um único tema, sempre a nos fazer reprisar os infindáveis cálculos de como precisamos agir se quisermos permanecer minimamente sadios, seguros e bem-providos.

Foi pensando nisso que resolvi enveredar pela leitura de Primo Levi, em busca, quem sabe, de algum conselho, tanto para nos tornarmos cientes dos desafios do confinamento para pessoas vivendo em situações extremas quanto para nos alertarmos da maneira que esta crise é administrada pela sociedade e por alguns dos seus líderes, cujos discursos e atitudes se traduzem em uma falta de compromisso com a vida e a dignidade humana.

Apesar de incômodo, o nosso confinamento não se assemelha à experiência de Levi. No entanto, como sugere a cientista social Heloisa Pait, professora da Unesp, basta intuirmos a possibilidade de chegada do vírus às favelas brasileiras, a produzir sofrimento generalizado, desorganização social e ausência ou impossibilidade de luto individualizado para que o testemunho do autor se faça presente em nosso pensamento.

Sobrevivente do Holocausto, Primo Levi é autor de vasta obra memorialística, que descreve as suas experiências no Campo de Auschwitz-III durante 11 meses de cativeiro. Italiano nascido em 1919, Levi foi transportado em 1944, permanecendo no campo de extermínio até a sua libertação em 27 de janeiro de 1945 —período em que testemunhou as consequências do que foi o mais sistemático projeto de genocídio da história.

Dos outros judeus italianos que chegaram com ele em Auschwitz, apenas 20 sobreviveram ao encarceramento, à rotina de trabalhos forçados, aos espancamentos e às seleções para as câmaras de gás e conseguiram, também, resistir à fome e à tuberculose, difteria, escarlatina e febre tifoide.

Em seu primeiro livro, “É Isto Um Homem” (1947), Primo Levi comenta que, diante dos horrores do campo, os prisioneiros questionavam-se frequentemente como poderiam relatar aqueles acontecimentos para quem estava do lado de fora, dando-se conta, finalmente, que não possuíam um vocabulário em comum aos homens livres para delatar habilmente todo o processo de aniquilação a enfrentar.

Neste sentido, os textos de Primo Levi cumprem a função de reproduzir, com excepcional clareza, a complexidade da vida em uma situação-limite, a fim de nos oferecer o que ele mesmo chamou de um sereno estudo sobre aspectos da alma humana, permitindo ao seu testemunho de sobrevivente nos inspirar a uma renovada crítica às expressões da lógica de exceção que, em maior ou menor grau, persiste na sociedade contemporânea.

Para o pesquisador Lucas Amaral de Oliveira da Universidade Federal da Bahia, a atualidade do pensamento do autor pode ser caracterizada como uma espécie de aviso de incêndio: “No núcleo da narrativa de Primo Levi está [...] a compreensão da fragilidade dos valores e dos princípios erigidos na modernidade, a fragilidade, inclusive, da vida social perante a violência e a brutalidade da política e do poder.”

Neste momento —em que além de precisarmos lidar com uma ameaça à nossa saúde temos de aprender a navegar por um terreno político excessivamente polarizado— talvez a principal lição de Primo Levi seja a de que devemos continuar atentos, apesar de vivermos em sociedades democráticas.

É o o que alerta o autor em “Os Afogados e os Sobreviventes” (1986): “Poucos países podem dizer-se imunes em relação a uma futura onda de violência, gerada pela intolerância, pela vontade de poder, razões econômicas, fanatismos religiosos e atritos raciais. É preciso, pois, despertar nossos sentidos, desconfiar dos profetas, das personalidades carismáticas, daqueles que dizem e escrevem ‘belas palavras’ não apoiadas por boas razões”.

Em um texto da última sexta-feira, os editores do jornal Financial Times chamam a nossa atenção para o fato de que a Covid-19 e o necessário confinamento para controlarmos a pandemia tanto forçam-nos a enxergar as desigualdades já existentes em nossas comunidades quanto a refletir sobre os problemas políticos e sociais que deverão surgir assim que a nossa batalha contra o vírus chegar ao fim.

Ora, se nas principais democracias do mundo ocidental o impacto social da crise econômica de 2008 gerou sérias consequências políticas, das quais ainda precisamos nos desvencilhar, quais serão os novos fatores de tensão e conflito ao final desta longa quarentena?

Para os editores do Financial Times, o modo como estamos combatendo o vírus beneficia alguns à custa de outros. Lembro-me mais uma vez de Primo Levi ao comentar as estratégias de sobrevivência no campo de extermínio: "Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado”.

Nesse sentido, os editores do jornal também nos advertem que, embora sacrifícios sejam inevitáveis, as sociedades ocidentais precisariam esclarecer como será a compensação àqueles que carregam o fardo mais pesado pelos esforços nacionais de contenção da crise, como por exemplo os jovens em idade escolar e início de carreira, os trabalhadores informais e os prestadores de serviços.

Assim, o artigo enfatiza que, para sermos capazes de demandar um sacrifício coletivo, devemos estar aptos a oferecer um contrato social que beneficie todos.

Ora, já nos advertia Primo Levi em seu primeiro livro: “Considera-se tanto mais civilizado um país, quanto mais sábias e eficientes são suas leis que impedem ao miserável ser miserável demais, e ao poderoso ser poderoso demais”.

No caso do Brasil, eu penso que qualquer espécie de compensação também deverá incluir aquelas pessoas em situação de pobreza extrema, cuja humanidade é frequentemente questionada por todos aqueles que, de alguma maneira, se beneficiam dos seus desesperados esforços individuais para escapar da mais completa miséria.

Em artigo de capa sobre o impacto da atual pandemia nos países mais pobres e subdesenvolvidos, publicado na edição de março da revista britânica The Economist, somos intimados a refletir sobre o grau de devastação que poderá acometer sociedades em que a maioria da população não tem condições de aplicar as regras básicas de higiene e de distanciamento social, como a população das nossas favelas.

Outro ponto do artigo refere-se à jovem população dos países em desenvolvimento e corrobora a recente declaração do pesquisador Marcelo Gomes (Fiocruz) à jornalista Monica Bergamo. Para ele, o fator idade pode não representar uma vantagem diante das condições de vida dos mais pobres.

A partir da leitura de Primo Levi, eu não posso deixar passar em branco que muitos desses homens e mulheres de comunidades carentes estariam em risco de compartilhar uma sina análoga a do anônimo enxame humano descrito pelo autor: “Englobados e arrastados sem descanso pela multidão inumerável de seus semelhantes, eles sofrem e se arrastam numa opaca solidão íntima, e nessa solidão morrem ou desaparecem sem deixar lembrança alguma na memória de ninguém”.

Embora estivesse ciente dos defeitos e prováveis injustiças cometidas em nossa tentativa de compararmos as situações extremas presentes ou pretéritas, ainda naquele seu primeiro livro Levi diz estar convencido de que "nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo”.

Muito sabiamente, Levi jamais considerou a sua sobrevivência um feito heroico. No entanto, em ensaio de 1999 para a New York Review of Books, o historiador Tony Judt comenta a coragem do autor em defender um humanismo sempre atento a preservação da memória individual e capaz de nos fazer confrontar os mais elementares aspectos do comportamento do humano que, se não forem investigados e compreendidos, podem levar o homem à própria ruína.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.