Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Coronavírus

Dificuldade em atribuir sentido ao cotidiano na pandemia leva a cansaço extremo

Escritor e psiquiatra Viktor Frankl oferece lições para enfrentar fadiga moral em períodos de isolamento

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Há quase dois meses em isolamento, sinto-me extremamente cansada. No entanto, este não é um cansaço comum, resultado do excesso das atividades cotidianas, como aquele que me abatia ao frequentar a universidade para cumprir a maratona acadêmica.

Antes da pandemia, sabíamos navegar o cotidiano, mesmo que isso significasse ter de lidar com eventuais questionamentos, adversidades e frustrações. Hoje, no entanto, o cotidiano tornou-se problemático e, talvez por conta disso, a fadiga seja reflexo da sensação cada vez mais acentuada de não conseguirmos atribuir um significado para muitas das experiências e tensões vividas na quarentena.

Uma perspectiva sobre cansaço neste confinamento é apresentada por Michael Baur, professor do departamento de filosofia da Universidade Fordham, em Nova York. Para o docente, a exaustão que sentimos neste momento seria sintomática do que ele entende por fadiga moral.

Ora, à medida em que constatamos a gravidade da pandemia —seja ao acompanhar o noticiário ou ao tomar conhecimento do diagnóstico positivo de uma pessoa do nosso relacionamento— percebemos que as nossas tarefas mais simples, como uma caminhada para exercício ou uma visita ao supermercado, passam a envolver uma intricada reflexão moral sobre os possíveis impactos das nossas decisões na vida dos outros. Em recente declaração para o site da revista Rolling Stone, Baur comenta:

“Nós estamos pensando sobre coisas que não costumávamos refletir no passado [...]. É ficção imaginar que jamais estivemos intimamente ligados uns aos outros, quando sempre o estivemos. Só que, agora, as consequências dos nossos atos foram maximizadas. E, por conta disso mesmo, as nossas decisões mais simples podem, agora, ter consequências morais que afetam a vida e a saúde das outras pessoas significativamente.”

A fadiga moral instala-se justamente ao nos sentirmos incapazes de encontrarmos uma solução para esses novos dilemas do cotidiano. Ela é agravada pelo cansaço mental acumulado por termos que lidar com uma realidade distinta da que estávamos acostumados, o que sugere, entre outras coisas, que o relativo sucesso das nossas decisões morais estaria relacionado ao desempenho da nossa capacidade cognitiva.

Shane Timmons e Ruth M. J. Byrne, pesquisadores da Escola de Psicologia de Trinity College, em Dublin, argumentam que o nosso julgamento moral aparenta ser afetado pelo esgotamento dos nossos recursos cognitivos. Nesse sentido, o cansaço interfere na maneira como realizamos tarefas e tomamos decisões.

Esse é um problema particularmente visível na experiência dos médicos e profissionais de saúde que lidam diariamente com as consequências imediatas da pandemia. No entanto, ele também nos afeta, a revelar um pouco da impotência que sentimos ao falhar em estabelecer um nexo entre a vivência deste momento anômalo e as nossas expectativas.

Percebo-me moralmente fatigada todas as vezes em que faço algo aparentemente contrário aos inúmeros conselhos para sobreviver a pandemia, como o de não levar a mão ao rosto durante uma caminhada. Há duas semanas, quando visitei o supermercado pela última vez, voltei para casa exausta em razão da possibilidade de estar transportando o vírus comigo; quem sabe, no bagageiro da bicicleta, entre um cacho de bananas e um pacote de aveia integral.

Percebi que, quanto mais me preocupo em simplesmente seguir as regras para sobreviver à situação, menos tenho forças para encarar os inúmeros desafios do dia a dia. Assim, penso que já não basta lavarmos as mãos, usarmos máscaras e evitarmos aglomerações. À medida que o tempo passa e o isolamento torna ainda mais imprevisível o nosso relacionamento com o futuro, faz-se cada vez mais necessário atribuir um significado a todos esses esforços.

Recentemente, em uma das leituras que me propus a fazer durante a quarentena, descobri que um antídoto para evitarmos a fadiga moral em períodos de crise e isolamento encontra a sua mais generosa expressão nas lições do escritor e psiquiatra austríaco Viktor Frankl.

Em “O Homem em Busca de Sentido” (1946), Frankl lança mão da sua experiência como prisioneiro em campos de concentração para comentar os estágios que caracterizam a resposta emocional do ser humano às situações de sofrimento e de quebra da normalidade.

Ele fala do choque de se ter a vida e a imagem que se faz de si viradas pelo avesso por circunstâncias que fogem completamente ao controle do indivíduo. Também descreve os sentimentos de apatia e de irritabilidade que irrompem em uma pessoa ao defrontar-se com as dificuldades de superar uma situação em que a sua liberdade de opção é exígua.

Dedicando-se à análise desses temas, Frankl observa que —mesmo ao encarar extremas vicissitudes— o ser humano caracteriza-se pela capacidade de emprestar um sentido à vida. Desse modo, expressa o autor:

“Não há sentido apenas no gozo da vida, que permite à pessoa a realização na experiência do que é belo, na experiência da arte ou da natureza. Também há sentido naquela vida que dificilmente oferece uma chance de se realizar criativamente e em termos de experiência, mas que lhe reserva apenas uma possibilidade de configurar o sentido da existência, precisamente na atitude com que a pessoa se coloca face à restrição forçada de fora sobre seu ser [...] Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá.”

Essa lição encontra arrimo na obra de pensadores como Baruch Spinoza e Friedrich Nietzsche, ambos mencionados por Frankl em seu livro. De Spinoza, registrou Frankl: “A emoção que é sofrimento deixa de o ser no momento em que dela formarmos uma ideia clara e nítida”. De Nietzsche, ressaltou: "Tendo o seu por quê? da vida, o indivíduo tolera quase todo como?".

Na última sexta-feira, perguntei no Twitter se alguém mais estava a sentir-se cansado. Alguns usuários afirmaram não encontrar forças para deixar as suas camas. Outros denunciaram que além de fatigados sentiam-se ansiosos, improdutivos e incapazes.

É realmente difícil termos de lidar com o impacto da pandemia na reconfiguração do cotidiano. A partir da leitura de Frankl, todos os relatos de exaustão dão-me a impressão de termos atingido o momento em que precisamos encontrar motivos para nos mantermos firmes em nossos propósitos, a buscar realizar os nossos valores com lucidez e humanidade. Pois, sem dúvida, serão os valores que escolhemos abraçar neste momento que irão delinear o nosso futuro.

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