Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Tragédia de Sófocles deixa lição para tempos de pandemia

'Filoctetes' ensina que precisamos nos reconhecer no outro para identificá-lo em nós mesmos, tanto nas atitudes mesquinhas como no sofrimento

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Sem saber exatamente quando a minha rotina voltará ao normal, acompanho as notícias da pandemia com receio de que qualquer descuido político se transforme em mais um catalisador de ressentimentos sociais, a potencializar expressões de entrincheiramento ideológico, ao exemplo do ataque à manifestação da organização Rio da Paz em homenagem aos mortos por Covid-19 e dos recentes atos de vandalismo ensejados pelo debate, ainda que legítimo, sobre a manutenção de controversos monumentos históricos.

Enfrentamos um período de sofrimento e convulsão social, a colocar em xeque muito do que tínhamos por certo em nossas vidas. Durante esse tempo, experimentamos o impacto de descobrir, quem sabe até mesmo pela primeira vez, que as nossas circunstâncias nunca estiveram exatamente sob o nosso controle.

Além das mortes com quais convivemos diariamente, a perda da nossa rotina e da imagem que fazemos de nós mesmos deixa para trás uma multidão em luto, atônita e desorientada: ávida por explicações de como tudo pode dar errado, apesar de cada um de nós haver-se esforçado por fazer a coisa certa.

Aqui, uma vez mais, a literatura nos oferece algumas pistas de como pessoas, objetos e circunstâncias totalmente fora do nosso controle emprestam valor e, ao mesmo tempo, ameaçam a nossa posição no mundo; a revelar quão vulneráveis são os nossos ideais de realização e felicidade.

Fragilidade esta que somente atua em nosso próprio demérito quando não reconhecemos o papel das emoções em nosso comportamento e na formação da nossa consciência moral. Como se o luto, a tristeza, a raiva, a inveja e a compaixão fossem elementos ininteligíveis e que nada tivessem a acrescentar ao nosso conhecimento da condição humana. Quando, em verdade, dessas emoções decorrem a avaliação das nossas circunstâncias, a influenciar o sucesso das nossas iniciativas.

Ao defrontar-me com as várias expressões do sofrimento neste período de pandemia, veio-me a lembrança a história de Filoctetes, personagem da “Ilíada” cujo nome empresta título à tragédia de Sófocles.

No poema homérico, Filoctetes teria sido inicialmente responsável por comandar sete dos navios enviados pelos gregos na expedição à Troia. Ao ser picado por uma cobra, Filoctetes desenvolveu uma ferida malcheirosa que lhe dificultava os movimentos e cujas dores faziam-lhe alterar o comportamento. Assim, é abandonado por Odisseu na deserta ilha de Lemnos, onde viveu miseravelmente a rememorar a traição do seu companheiro.

Em sua tragédia, Sófocles conta a história do resgate de Filoctetes por Neoptólemo, filho de Aquiles. Neoptólemo viaja para Lemnos em companhia de Odisseu na tentativa de reaver o arco de Héracles e, com ele, conquistar a cidade de Troia. No entanto, ao encontrar Filoctetes, ele se compadece do sofrimento e da solidão do guerreiro, decidindo revelar o plano de Odisseu para lhe surrupiar o arco e uma vez mais abandoná-lo à própria sorte.

Furioso com esta revelação e cego pela dor que irradia do seu ferimento, a reação de Filoctetes foi a de recusar a ajuda de Neoptólemo, a esbravejar preferir morrer a ter de embarcar mais uma vez ao lado do homem que o traiu, mesmo que isto o viesse recuperar a saúde e a glória.

Martha Nussbaum, em “Upheavals of Thought: The Intelligence of Emotions” (2001), argumenta que as emoções seriam um tipo de juízo de valor a exercer uma contribuição ao nosso conhecimento moral. Assim, ao examinar as reações humanas diante dos dilemas impostos pelo destino, Nussbaum interpreta “Filoctetes” de modo a apresentar o argumento de que a compaixão decorrente da faculdade de imaginar o sofrimento alheio nos permite reconhecer as nossas próprias vulnerabilidades.

Por sua vez, Ilit Ferber, em “Language Pangs: On Pain and the Origin of Language” (2019), oferece-nos uma análise de “Filoctetes” a partir da qual nós podemos refletir sobre a relação entre a dor e a linguagem, e de como ela nos permite interagir com o sofrimento alheio. Ferber contesta interpretações da tragédia em que a dor de Filoctetes é tida como um empecilho à comunicação. Ora, diz-nos a autora:

“É precisamente quando a linguagem se desintegra diante da dor, quando ela se torna um mero esboço de fala articulada, que Neoptólemo passa a nutrir sentimentos por Filoctetes. Ele não recua ante a manifestação das terríveis dores e dos gritos do personagem, mas antes sente uma repentina afinidade por Filoctetes: condói-se dele a ponto de sentir aquela mesma dor em seu próprio corpo”.

Inspirada nessas autoras na minha leitura da tragédia de Sófocles, percebo três diferentes exemplos de como nos relacionamos com as nossas próprias emoções e de como estas assistem à nossa reação ao sofrimento alheio, seja a expandir ou a inibir o exercício da compaixão.

Aprendemos com o sofrimento de Filoctetes que, quando extrema e não resolvida, a dor pode despertar sentimentos que turvam a nossa capacidade deliberativa, fazendo-nos correr o risco de tomar decisões equivocadas.

Tal Filoctetes, qualquer de nós, em momentos de agonia, arvora-se em negar a realidade ou a querer colocar o mundo abaixo, na tentativa de manter a ilusão de controle sobre as próprias circunstâncias. Assim, queixa-se o personagem ao coro de soldados que tenta lhe convencer a acompanhar Neoptólemo: “Certamente não se pode culpar quem, convulso por uma tempestuosa dor, grita fora de si”.

O comportamento de Odisseu depõe de como nada adianta negarmos a dor e o sofrimento alheio para atingirmos os nossos objetivos; ao exemplo das lideranças políticas que recalcitram em tirar vantagens da sociedade diante de uma crise.

Ironicamente, tanto o descaso daqueles que se demonstram impassíveis aos semelhantes, como a fúria dos que sofrem, a impedi-los de enxergar o próprio bem, concorrem para o desastre. Do que se pode deduzir que conselho do coro de soldados a Filoctetes, da maior atualidade em nosso tempo, seja aplicável a ambos os heróis e dirigida a nossa sociedade:

“Pelos deuses, se tens alguma reverência, aproxima-te do estrangeiro que te veio com benevolência, mas reflete, reflete bem: depende de ti escapar deste teu mal, pois é deplorável alimentá-lo, sem aprender a suportar os inúmeros fardos que o acompanham.”

Por fim, resta-nos apenas o exemplo de Neoptólemo. Este, ao defrontar-se com o sofrimento de Filoctetes, percebe que a vitória grega sobre Troia não valeria a pena se conquistada ao preço da desgraça e da vergonha de um homem cujo único crime fora a falta de sorte.

Assim, ao dialogar com Filoctetes, Neoptólemo nos ensina que o verdadeiro exercício da liderança envolve a habilidade para reavaliar as situações a partir da capacidade de nos reconhecer no outro. Ora, questiona o herói ao confessar para Filoctetes o vício das suas intenções: “Então não é possível mudar de opinião?”.

Os atores Marcelo Lazzaratto e Paulo Marcello em cena da peça "Filoctetes", montagem da Companhia Razões Inversas com direção de Marcio Aurelio
Os atores Marcelo Lazzaratto e Paulo Marcello em cena da peça "Filoctetes", montagem da Companhia Razões Inversas com direção de Marcio Aurelio - João Caldas/Divulgação

Esta maleabilidade expressa por Neoptólemo não enfraquece a defesa dos nossos interesses. Mas, como sugere Nussbaum, permite-nos ampliar o elenco dos fatores que, mesmo permanecendo fora do nosso controle, ainda assim havemos de considerar determinantes para o nosso desenvolvimento moral e prosperidade.

O nosso problema é que o mundo permanece dividido entre dois grandes campos morais. De um lado, temos aqueles que acreditam na defesa dos seus próprios interesses, custe o que custar. De outro, encontramos os que, de tanto sofrer injustiças, já não conseguem enxergar além das suas próprias feridas.

Portanto, a lição a ser extraída do texto de Sófocles é a de que, para seguirmos adiante, precisamos recuperar a capacidade de nos reconhecermos no outro para finalmente identificá-lo em nós mesmos, tanto na mesquinhez como no sofrimento.

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