Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Literatura nos induz a enfrentar o inquietante nas experiências cotidianas

Escritores como Poe, Wilde e Singer dominam a criação de fenômenos angustiantes como ferramenta literária

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Em ensaio de 1919, Sigmund Freud caracteriza o inquietante —das Unheimliche— como algo que nos seria familiar, mas que, por algum motivo, teria se tornado estranho em sua manifestação.

Segundo Freud, os duplos, as repetições e as coincidências, bem como os resquícios de velhas crenças anímicas ou, até mesmo, a satisfação imediata de um desejo caracterizariam fenômenos potencialmente angustiantes a serem vivenciados seja em nosso cotidiano, seja através do contato com a literatura.

Dentre os autores que dominam o inquietante enquanto ferramenta literária, Freud cita o alemão E.T.A. Hoffmann, de quem oferece uma extensa interpretação do conto “O Homem de Areia” (1816).

Homem com camisa branca e livros no colo
Retrato de Isaac Bashevis Singer em 1969 - Israel Press and Photo Agency (I.P.P.A.) / Dan Hadani collection, National Library of Israel/Wikimedia Commons

No entanto, vários outros autores podem ser inseridos nessa mesma categoria, a exemplo de Edgar Allan Poe em “A Queda da Casa de Usher” (1839), Oscar Wilde em “O Retrato de Dorian Gray” (1890) e Isaac Bashevis Singer em “Satã em Gorai” (1933).

Ambientado na Polônia do século 17, o romance de Singer destaca as consequências sociais do arrebatamento messiânico inspirado pelos seguidores do místico Sabbatai Zevi (1626-1676) entre os habitantes da remota cidadezinha de Gorai, depois do massacre dos judeus pelas tropas cossacas de Zynoviy Bohdan Khmelnitski.

A história começa com a lenta reorganização da vida em Gorai pelos seus antigos líderes comunitários. No entanto, com a chegada de um mensageiro do Oriente Médio, a população acabrunhada, ainda sob o impacto do episódio de violência, recebe notícias dos milagres atribuídos a Sabbatai Zevi, deixando-se levar pela ideia do advento do messias e de que, portanto, todos os seus problemas haviam acabado.

Convencida de que o sofrimento provocado pelo massacre de Khmelnitski nada mais teria sido do que um prenúncio da chegada do messias, a população de Gorai insurge-se contra a sobriedade do seu velho rabino até finalmente conseguir afugentá-lo da cidade.

A partir daí instaura-se a desordem. Os compromissos e as leis que emprestavam coesão à vida comunitária deixam de ser observados. A população de Gorai sucumbe ao mais extremo irracionalismo, fragmentando-se entre hedonistas e penitentes; cada facção convicta de estar fazendo o máximo para merecer a salvação. Superstição e miséria rebentam em uníssono, a culminar com um ritual de exorcismo e a notícia da conversão de Sabbatai Zevi ao islã.

No ensaio sobre o inquietante, Freud comenta que nem sempre o emprego de eventos sobrenaturais pela literatura corresponde à expressão de algo capaz de nos induzir à angústia. Exemplo disso seriam os espíritos retratados por Dante Alighieri na “Divina Comédia” ou as bruxas, os fantasmas e os adivinhos em algumas das principais tragédias de Shakespeare.

Segundo Freud, tais criações poderiam ser interpretadas como funestas ou melancólicas. Mas, surpreendentemente, não surtiriam o efeito de tornar algo estranho ou repentinamente incompreensível aos nossos olhos. Assim, observa: “Nós adequamos o nosso julgamento às condições da realidade fingida pelo poeta e tratamos espíritos, almas e fantasmas como se fossem existências legítimas; tal como nós próprios na realidade material”.

Retrato de Edgar Allan Poe
Retrato de Edgar Allan Poe - Wikimedia/Reprodução

De fato, ao procedermos a leitura de Dante, nos compadecemos do destino de muitos dos seus fantasmas, ao exemplo dos amantes Paolo Malatesta e Francesca da Rimini. Algo semelhante também acontece ao nos depararmos com as bruxas em “Macbeth” ou o adivinho em “Júlio César.” Afinal, eles fazem parte indissociável do universo retratado por seus autores.

Já no romance de Singer acontece justamente o oposto. A crença messiânica de Sabbatai Zevi é trazida para a comunidade e toma corpo às escondidas, mesmo entre os seguidores e familiares do velho e ajuizado rabino. Nada do que acontece a partir da chegada do mensageiro é comum às experiências até então compartilhadas pelos habitantes da cidadezinha.

A sensação de que algo extraordinário estaria prestes a acontecer é acentuada pelo narrador do romance, que a todo momento oferece meios para efetuarmos uma comparação entre o passado e o presente da comunidade, como se estivesse a tentar confirmar a interpretação freudiana de que “para que surja o sentimento inquietante é necessário um conflito de julgamento sobre a possibilidade das crenças superadas e não mais dignas de fé serem mesmo reais.”

Para Seth L. Wolitz, professor de estudos judaicos e literatura comparada na Universidade do Texas, o romance de Singer pode ser lido de diversas maneiras. Seja como um romance de época, na tentativa de recriar um contexto histórico específico, seja como uma reflexão sobre a frágil situação política dos judeus poloneses entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, caracterizada pelo ceticismo diante de lideranças tradicionais e o crescente apelo de utopias seculares, ou, ainda, como uma parábola cujo ensinamento expressaria um conteúdo de interesse universal.

O escritor Oscar Wilde
O escritor Oscar Wilde - Reprodução

É justamente como parábola que a história de “Satã em Gorai” demonstra a sua pertinência, servindo-nos de inspiração para refletirmos sobre o papel do inquietante na política, permitindo-nos explorar aspectos da vida emocional dos indivíduos que, inevitavelmente, concorrem para a intensificação de conflitos, o entrincheiramento de opiniões e a desagregação de uma comunidade.

Sobre este tópico, o pesquisador Sanford Pinsker, especialista em história e cultura judaica, observa que a ambição de Singer em “Satã em Gorai” não teria sido a de recriar a doce excentricidade dos personagens tradicionais da literatura iídiche. De contrário, Singer ter-se-ia concentrado em retratar questões relativas à contemporaneidade, como as possíveis consequências desastrosas do nosso conflituoso relacionamento com as utopias.

Isto é algo que eu busco enfatizar desde os meus primeiros artigos, ao comentar como os nossos vínculos ideológicos e lealdades políticas precisam ser revistos com relação às nossas motivações pessoais. Ao perdermos de vista as nossas próprias motivações, corremos o risco de nos deixarmos controlar por ideias que, muitas vezes, acabam por revelar-se estranhas às nossas convicções.

Assim, ao contar uma história sobre demônios, possessões e falsos messias, Singer estaria, em verdade, induzindo-nos ao enfrentamento do inquietante em nossas experiências cotidianas, deste modo a confirmar a assertiva de Freud:

“O escritor pode exacerbar e multiplicar o inquietante muito além do que é possível nas vivências, ao fazer sobrevir acontecimentos que jamais — ou muito raramente — encontramos na realidade. Ele como que denuncia a superstição que ainda abrigamos e acreditávamos superada, ele nos engana, ao prometer-nos a realidade comum e depois ultrapassá-la”.

*

Aos leitores interessados em literatura iídiche: no primeiro episódio do podcast Afinidades Eletivas, eu converso com o crítico literário Thiago Blumenthal e Rafael Rocca, pesquisador em literatura do testemunho do Holocausto, sobre o inquietante na obra de Isaac Bashevis Singer.

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