Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

Como superar males sociais como holocausto e escravidão?

Livro discute se processo que levou alemães a assumirem a culpa pelos crimes na 2ª Guerra poderia ser adaptado à questão racial nos EUA

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em “Learning from the Germans: Confronting Race and the Memory of Evil” (2019), a filósofa Susan Neiman retoma alguns dos temas da sua obra —a questão do mal no pensamento moderno, a defesa dos valores iluministas e a necessidade de nos tornarmos indivíduos autônomos, além de elementos autobiográficos— para discutir se um processo semelhante ao que levou os alemães a assumirem a culpa pelos crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial poderia ser adaptado à questão racial nos Estados Unidos.

Nascida na Georgia em 1955, no mesmo ano em que o adolescente Emett Till fora brutalmente linchado no estado do Mississippi, Neiman passou boa parte da infância e da adolescência em Atlanta, onde tomou conhecimento dos inúmeros obstáculos sociais enfrentados pelos negros da região.

Da sua criação no sul dos Estados Unidos, Neiman comenta das atividades políticas dos seus pais e dos esforços maternos em envolver os filhos, ainda pequenos, em dinâmicas de dessegregação racial, a destacar a primeira ocasião em que lhe foram apresentadas as proibições que os seus coleguinhas enfrentavam, tal a interdição de frequentarem a piscina pública ou de simplesmente serem vistos brincando na companhia de crianças brancas.

Já na década de 1980, Neiman resolveu reservar um período da sua formação em Harvard para estudar filosofia na Alemanha, experiência registrada na biografia “Slow Fire: Jewish Notes from Berlin” (1992). Durante esse tempo, além de testemunhar os últimos momentos de uma cidade dividida e ainda insegura em relação ao que fazer com os fantasmas da Segunda Guerra, a filósofa começou a dar-se conta da complexidade recorrente à experiência da sua própria identidade:

“Na Berlim daqueles anos, as inquietações pessoais ameaçavam submergir no questionamento do histórico mundial. Isto era monstruoso e comovente, dando à experiência mais corriqueira uma profundidade que você nunca imaginou; abrindo espaço para uma obscenidade em escala de impossível aferição.”

Após uma passagem por Yale e de um intervalo de cinco anos em Israel, quando foi professora na Universidade de Tel Aviv, Neiman retornou à Alemanha, onde desde o ano 2000 chefia as atividades do Einstein Forum, em Potsdam. Ao refletir sobre a sua trajetória no prefácio de “Learning from the Germans”, ela explicita:

“Eu comecei a minha vida como uma garota branca no Sul segregado e provavelmente terminarei como uma judia em Berlim (...) Eu não sou uma observadora neutra; essa história também é minha. A decisão de falar na primeira pessoa não nasceu, entretanto, da convicção de que a história é irrevogavelmente subjetiva. Ela é uma forma de localizar e assumir a responsabilidade por minhas reivindicações.”

Neiman comenta que a denazificação da Alemanha levou décadas para surtir algum efeito, chamando-nos a atenção para o fato de que, no período imediatamente posterior à guerra, os alemães estiveram muito mais preocupados em reclamar para si o papel de vítima do que em reconhecerem-se agressores.

Ela assevera que o processo hoje conhecido por "vergangenheitsaufarbeitung" começou a tomar corpo a partir da década de 1960, quando os jovens resolveram confrontar o silêncio dos mais velhos em relação ao Holocausto e aos crimes perpetrados pelo exército alemão na Frente Oriental:

“Vergangenheitsaufarbeitung, a elaboração do passado, foi uma das primeiras palavras que eu adicionei ao meu vocabulário alemão, que se estava lentamente libertando das imagens dos homens taciturnos e fardados a unicamente esbravejar Jawohl! Resolver o passado criminoso da Alemanha não foi um exercício acadêmico; era íntimo demais para isso. Significava confrontar pais e professores e denunciar a pobreza da sua autoridade. Os anos 60 na Alemanha foram mais turbulentos do que estes em Paris ou Praga —isto, sem falar em Berkeley— porque não se concentraram em crimes cometidos por alguém no longínquo Vietnã; mas naqueles consideravelmente mais próximos de casa; cometidos pelas pessoas que lhes haviam dado as primeiras lições de vida.”

Resultado de seis anos de pesquisa e de entrevistas realizadas na Alemanha e no sul dos Estados Unidos, onde Neiman esteve como pesquisadora na Universidade do Missisipi e acompanhou o trabalho do Winter Institute for Racial Reconciliation, “Learning from the Germans” conta com depoimentos do antigo chefe de espionagem da Alemanha Oriental, Markus Wolf, da filósofa Bettina Stangneth, autora de “Eichmann Before Jerusalem”(2011), do veterano de aeronáutica e assessor político James Meredith —o primeiro negro a estudar na Universidade do Mississippi, no ano 1962— e de Charles Reagan Wilson, autor do clássico estudo “Baptized in Blood: The Religion of the Lost Cause” (1980).

Entre os entrevistados alemães, alguns declaram-se céticos com relação ao sucesso da "vergangenheitsaufarbeitung". Stangneth, cujo livro questiona a validade do célebre conceito arendtiano da banalidade do mal a partir de um estudo de novos documentos sobre o caso Eichmann, argumenta que elementos do nazismo persistem na sociedade alemã.

Outros, ao exemplo de Markus Wolf, defendem a ideia de que a República Democrática Alemã teria sido muito mais eficiente do que a Alemanha Ocidental em lidar com o antissemitismo e com o passado nazista; opinião igualmente defendida por Neiman, mas que, ainda assim, carece de um exame mais cuidadoso, como denuncia o historiador Jonathan Sperber em sua crítica deste livro para o Times Literary Supplement:

“A recente ascensão de um partido político anti-imigrante, racista e cada vez mais pró-nazista, o AfD, especialmente na ex-Alemanha Oriental, lança dúvidas sobre o elogio de Neiman ao antifascismo da RDA.”

Seja como for, a realidade é que não existe uma solução mágica para lidar com o ressentimento de modo a extingui-lo por completo das relações humanas. Ciente deste fato, Neiman sugere que a elaboração do passado, aos moldes do que ocorre na Alemanha, teria por objetivo reparar a capacidade do indivíduo para a vivência da própria autonomia, a ensejar, entre outras coisas, a permanente reflexão sobre as justificativas que adotamos para legitimar discursos e comportamentos repugnantes, quase sempre na intenção de nos mantermos alheios às consequências dos nossos preconceitos.

Por isso mesmo, Neiman alerta-nos de que o sucesso das várias iniciativas de confrontação do passado depende da nossa sensibilidade para distinguir as peculiaridades de cada sociedade:

“Quais ruas devem ser renomeadas, quais estátuas desmontadas, como aqueles que cometeram crimes devem ser lembrados e como seus erros devem ser retribuídos —nenhuma dessas questões pode ser decidida abstratamente, de uma vez por todas. Por mais semelhantes que sejam os crimes nacionais, eles também são implacavelmente particulares, e qualquer tentativa de reparação também deve ser particular. Apenas análises diretas de casos e contextos específicos podem nos ajudar a encontrar o equilíbrio certo. ”

Neste sentido, a historiadora Deborah E. Lipstadt é certeira ao comentar o livro para o The New York Times, afirmando que, muito mais do que uma comparação entre dois grandes males, o holocausto e a escravidão, a reflexão de Neiman teria por objetivo comparar a eficácia de estratégias distintas de redenção e reparação social, oferecendo-nos meios de reconhecer e superar as nossas próprias deficiências morais.

*

Aos leitores interessados sobre o tema:

Às 13h do dia 9 de dezembro, eu participo de um evento com a filósofa Susan Neiman ao lado das pesquisadoras Andrea Kogan e Ludmila Franca-Lipke. O evento é promovido pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo, o Labô. Mais informações pelo site

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.