Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Em todo Ano-Novo, prometemos finalmente dizer sim à vida

Hannah Arendt sustenta que cumprir promessas é uma maneira de remediar o curso das nossas ações

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Faz algumas semanas que a minha mãe lançou um desafio: pediu-me um texto sobre o Ano-Novo, a explicar o porquê de as pessoas tanto se importarem com essa ocasião, como se uma simples alteração de data fosse capaz de mudar as suas vidas para melhor, sem que para isso precisassem fazer qualquer esforço.

Tentei fugir da raia, mas desejo de mãe é algo do que ninguém se pode esquivar. Deste modo, ao tentar atendê-la, vieram-me imagens de “Morte e Vida Severina”. Quando do nascimento de uma criança, seu José —mestre Carpina— tenta fazer com que Severino, o retirante, recobre a confiança na vida:

"E não há melhor resposta

Que o espetáculo da vida:

Vê-la desfiar seu fio,

Que também se chama vida,

Ver a fábrica que ela mesma,

Teimosamente, se fabrica,

Vê-la brotar como há pouco

Em nova vida explodida;

Mesmo quando é assim pequena

A explosão, como a ocorrida;

Como a de há pouco, franzina;

Mesmo quando é a explosão

De uma vida Severina".

Acredito ser um pouco disso que celebramos na noite de 31 de dezembro, quando muitos fazem as listas dos seus sonhos e vestem-se nas cores que os simbolizam. Eu mesma não resisto ao embalo e procuro me enfeitar com uma peça de roupa amarela, na expectativa do porvir!

A virada do ano, portanto, com todos aturdidos pela própria euforia, pelo alarido dos vizinhos e pelo ribombar dos fogos de artifício, não deixa de funcionar como uma metáfora de como viemos parar nesse mundo: nós e todas as nossas pretensões severinas.

Sempre que leio os mencionados versos, penso em Hannah Arendt no livro “A Condição Humana” (1958), a vislumbrar no nascimento uma chave para compreensão do homem; a nos permitir estabelecer uma correlação entre o seu pensamento e a poesia de João Cabral de Melo Neto:

“O novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo de novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação, e, portanto, de natalidade”.

Para Arendt, a natalidade representa a própria dinâmica de realização do homem a ter no nascimento, expressão não somente da preservação da espécie como da criação de objetos a fazer parte do mundo e do compartilhamento de significados para a experiência existencial; tratando-se, por assim dizer, de um princípio de ruptura com a previsibilidade do cotidiano a partir da ação humana:

“O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas e à sua probabilidade que, para todos os fins práticos e cotidianos, equivale à clareza; assim o novo sempre aparece na forma de um milagre. O fato de o homem ser capaz de agir significa que pode se esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isso, mais uma vez, só é possível porque cada homem é único, de sorte que, de cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo".

Assim, cumpre anotar outro poema de João Cabral a compartilhar dessa mesma perspectiva sobre a experiência humana —“Cartão de Natal”—, a frisar, uma vez mais, a capacidade do indivíduo em realizar o improvável:

"Pois que reinaugurando essa criança

pensam os homens

reinaugurar a sua vida

e começar novo caderno,

fresco como o pão do dia;

pois que nestes dias a aventura

parece em ponto de vôo, e parece

que vão enfim poder

explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno

sua atração núbil para o dente;

que o entusiasmo conserve vivas

suas molas,

e possa enfim o ferro

comer a ferrugem

o sim comer o não".

Desses versos, eu gosto principalmente da inversão da relação entre a ferrugem e o ferro; do sim e do não, como se o poeta estivesse buscando inspirar em cada um de nós a coragem para romper com os próprios limites e buscar o que antes nos parecia tanto impossível.

Eu não falo aqui simplesmente daqueles planos raquíticos e de vida severina que traçamos ao final do ano, como o desejo de perder peso ou a vontade de finalmente comprar um carro.

Falo de um plano muito maior e que, de tão imenso, parece-nos quase invisível, tornando-se —ironicamente— apenas perceptível em tudo o que existe de pequenino e insignificante e, por isso mesmo, a sempre nos tomar de surpresa quando finalmente nos apercebemos da sua consecução, justamente na celebração das nossas conquistas severinas.

Esse plano trata da vivência da nossa própria humanidade, ou seja, da coragem para assumirmos os riscos de cada uma das nossas ações, inclusive o risco de —ao realizarmos os nossos planos— estarmos causando qualquer dano ao próximo, mesmo que seja sem querer, ao exemplo do que acontece com as personagens envolvidas na representação de uma tragédia. Ora, adverte-nos Arendt:

“Os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe completamente o que está fazendo; que sempre vem a ser 'culpado' de consequências que jamais pretendeu ou previu; que, por mais desastrosas e imprevistas que sejam as consequências do seu ato, jamais poderá desfazê-lo; que o processo por ele iniciado jamais se consuma inequivocamente em um único ato ou evento, e que seu verdadeiro significado jamais se revela para o ator, mas somente à mirada retrospectiva do historiador, que não age”.

Impossível não observar nessas palavras de Arendt e, também, no poema de Cabral —em que o sim há de comer o não— qualquer afinidade com o que é dito por Friedrich Nietzsche sobre o caráter da ação humana.

Ocorre que, tanto para Arendt como para Nietzsche, por mais arduamente que planejemos algo, nunca estaremos em pleno controle dos resultados das nossas ações.

Isto é assim porque, segundo Arendt, ao nos manifestarmos, a nossa vontade tende a se perder em uma teia de outras vontades e intenções conflitantes, seja a fazer com que, muitas vezes, algo iniciado por nós sequer alcance o seu objetivo, seja a fazer com que a nossa intenção resulte no seu oposto, como bem aponta o professor Adriano Correia no seu ensaio “Sobre o Trágico na Ação: Arendt (e Nietzsche)”, de 2011.

A única maneira que temos para remediar o curso das nossas ações, diz Arendt, é continuar agindo, desenvolvendo planos, oferecendo e cumprindo promessas, sem jamais nos deixarmos acovardar diante das incertezas. Nietzsche propôs algo mais ou menos parecido em “A Gaia Ciência” (1882), ao descrever a sua corajosa fórmula de amor ao destino:

“Para o Ano Novo. — Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho de viver; pois ainda tenho de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum [eu sou, portanto penso: eu penso, portanto sou]. Hoje, cada um se permite expressar o seu mais claro desejo e pensamento, também eu, então quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração — pensamento que deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: — assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”.

Amar a vida mesmo naquilo que nos é mais doloroso, como o personagem bíblico José o fez no Egito, ao reaprender a amar os próprios irmãos que lhe precipitaram o destino. Essa é a promessa que celebramos em toda passagem de ano —a de finalmente conseguirmos dizer sim à vida!

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