Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Mestre da cabala, Gershom Scholem nos ajuda a entender a ideia de mito na política

Estudioso do misticismo judaico divergiu de Freud ao tratar religião e linguagem com o mesmo peso

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Concluí recentemente a leitura da biografia de Gershom Scholem, escrita pelo historiador David Biale, professor da Universidade da Califórnia em Davis.

O livro faz parte de uma coleção da Editora da Universidade Yale, organizada com o intuito de divulgar a história de vida de personalidades de origem judia que deixaram a sua marca nos campos da política, da ciência, da cultura e do entretenimento, contemplando uma lista que inclui desde o filósofo Moses Mendelssohn e o escritor Heinrich Heine até o comediante Groucho Marx e a cantora Barbra Streisand.

Nascido em Berlim, em 1897, Scholem foi muito amigo do filósofo Walter Benjamin, de quem, ainda adolescente, aproximou-se e sobre quem escreveria o relato “Walter Benjamin: a História de uma Amizade” (1965).

Retrato de Gershom Scholem em 1925
Retrato de Gershom Scholem em 1925 - Wikimedia Commons/Reprodução

Ele também conviveu e trocou cartas com Martin Buber, Franz Rosenzweig, Hannah Arendt, Theodor Adorno e Jürgen Habermas. À guisa de curiosidade, pertence a Scholem a retumbante e polêmica acusação de que a autora de “Eichmann em Jerusalém” (1963) sofria de uma total falta de empatia com o próprio povo, o que, certamente, custou-lhe os mais de 30 anos de amizade com Arendt.

Além de todos esses celebres relacionamentos, Scholem foi um dos pioneiros do êxodo europeu para Israel no século passado, experiência por ele relatada em “De Berlim a Jerusalém” (1977). Somados, esses dois feitos já seriam suficientes para fazer dele uma das mais importantes testemunhas da sua época. No entanto, vale a pena ressaltar que a sua relevância vai muito além das suas amizades ou do seu testemunho para alguns dos eventos que marcaram o século 20.

Ainda hoje, 39 após a sua morte, Scholem é considerado um dos maiores estudiosos do misticismo judaico. Para se ter uma ideia do impacto da sua obra dentro e fora do ambiente acadêmico, basta dizer que os seus ensaios reunidos no volume “As Grandes Correntes da Mística Judaica” —originalmente publicado em 1941— permanecem um clássico e arrancaram elogios de críticos como Harold Bloom e Robert Alter.

Para Bloom, a influência desse livro há de estender-se indefinidamente. Já para Alter, o papel de Scholem na literatura é semelhante aos de Walter Benjamin e Franz Kafka: grandes representantes da dúvida e do produtivo embate com a tradição que caracterizam a nossa experiência do mundo moderno.

Foi graças ao trabalho de Scholem que muitos leitores do século 20 puderam conhecer um pouco mais da cabala e das suas origens —não enquanto uma peça de museu ou um instrumento de magia, ao exemplo do que nós comumente encontramos nas revistas de variedades, disputando espaço com as previsões do horóscopo, mas enquanto um conjunto de descrições simbólicas que informam, entre outras coisas, a nossa atuação na história.

Embora seja difícil definir a cabala em termos gerais, como um todo —a não ser a partir de pontos específicos de referência—, uma das questões propostas pelos estudos de Scholem é a de como as nossas mais antigas crenças impactam a maneira pela qual tomamos parte nos acontecimentos da nossa época e os interpretamos.

Segundo Biale, Scholem tenta responder essa questão de diversas maneiras, a propor, entre outras coisas, que existiria íntima relação entre o tipo de cabala desenvolvida no século 16 pelo rabino Isaac Luria e o trauma da expulsão dos judeus da Península Ibérica ou que a heresia do místico Sabbatai Zevi —referido por Isaac Bashevis Singer no romance “Satã em Gorai” (1933)— não teria sido um episódio desimportante na história do judaísmo, havendo, para Scholem, possibilitado, ainda que indiretamente, o surgimento do iluminismo judaico, do hasidismo no século 18 e demais recorrências.

Mas o que será que esses dois exemplos querem dizer em termos concretos para quem não é judeu e mesmo para quem não tem o mínimo interesse no misticismo judaico? Será que outros povos e outras culturas também teriam o que aprender com o pensamento de Scholem?

Eu penso que sim. Afinal, uma das principais lições a se tirar da sua obra é a de que existiria uma incessante tensão dialética entre a maneira que a história informa as nossas crenças e a forma como essas mesmas se mostram capazes de desencadear novos eventos e, estes, novas circunstâncias históricas.

Conforme observa outro biógrafo de Scholem, o escritor George Prochnik —autor de “Stranger in a Strange Land: Searching for Gershom Scholem and Jerusalem” (2017)— Scholem costumava identificar-se como um arqueólogo da religião, mas, nisso, o seu trabalho ao recuperar textos místicos esquecidos pela religião normativa, além, é claro, da sua contribuição no pós-guerra para resgatar livros judaicos confiscados pelos nazistas, torna-se ainda mais relevante se estivermos dispostos a vislumbrar qualquer paralelo com o entendimento que Sigmund Freud tinha da psicanálise enquanto arqueologia do inconsciente.

Cynthia Ozick, autora do ensaio “The Fourth Sparrow — the Magisterial Reach of Gershom Scholem” (1983), também compara Freud e Scholem com relação aos seus respectivos projetos intelectuais:

“Gershom Scholem é um historiador que refez o mundo. Ele o refez da maneira como Freud disse tê-lo refeito — quebrando a casca do racional para descobrir os demônios em espiral dentro dele [....]. [Mas] Freud ousou ultrapassar apenas um pouco as margens da psicologia; enquanto Scholem, cujo meio era a história, tocou no próprio terreno do imaginário humano”.

Segundo a autora, enquanto a religião para Freud não passaria de uma ilusão, para Scholem, ela seria tão importante para a configuração da nossa mente quanto a própria linguagem.

No entanto, ainda que possuíssem pontos de vistas díspares em relação à religião —Scholem, inclusive, é um crítico mordaz da última obra de Freud, no livro “Moisés e o Monoteísmo” (1939)—, cabe ressaltar que tanto ele como Freud esforçaram-se para demonstrar que muito daquilo que consideramos irracional desempenha importante papel na maneira como, em vigília, organizamos as nossas vidas.

Este é um ponto que eu sempre tento ressaltar nas minhas colunas na Folha. Isto é, o fato de que muitos dos fenômenos políticos e sociais da nossa época podem ser interpretados como sendo condicionados por um sistema de crenças que, embora desejemos estar ultrapassado, ainda assim, querendo ou não, permanece nuclear para a compreensão do homem e das suas circunstâncias.

Observem, por exemplo, o importante papel que a palavra mito ganhou na política brasileira dos últimos tempos. Quais crenças estariam expressas no emprego dessa palavra ao caracterizarmos determinado político? Até que ponto o mito funciona como um instrumento de redenção? Quando será que as suas ações revelam inclinações apocalípticas e por que será que nos deixamos seduzir por ideologias antinômicas? Essas, certamente, são algumas das questões que o pensamento de Scholem pode nos ajudar a responder.

Em tempo: o pesquisador Michel Gherman (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ) desenvolve pesquisa sobre o cenário político brasileiro com inspiração no pensamento de Scholem.

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