Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Folha, 100 jornalismo

Quantas lembranças cabem em um jornal?

Centenário da Folha me faz recordar passeios com meus pais aos domingos e minha época de escola

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Na minha infância, para comprarmos a Folha dos domingos tínhamos que percorrer o centro do Recife até chegarmos em uma enorme banca de revistas na avenida Guararapes, em frente à sede dos Correios. De lá, continuávamos o passeio rumo à praça do Marco Zero, onde gostávamos de ler o jornal sentados na banqueta do cais do porto, aos pés da estátua do barão de Rio Branco.

Assim, posso relatar muitas das cenas que testemunhamos ao atravessar a cidade com o jornal debaixo do braço, a contemplar tanto a beleza dos prédios antigos como a pobreza que sempre persistiu em dominar as ruas do centro.

Jovem pula na água do Marco Zero, em Recife - Danilo Verpa - 7.abr.17/Folhapress

No oitão da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, por exemplo, os miseráveis amontoavam-se uns sobre os outros, como se a formar única massa. Alguns cheiravam cola para distrair a fome, outros, de tão desesperados, tinham como se fosse os olhos fixos no mundo vindouro.

Um espetáculo ainda mais perturbador se atentarmos para o fato de que essa velha igrejinha é vizinha do Tribunal de Justiça e, que, diante dela, muitas vezes, permaneciam estacionados os carros oficiais das autoridades, a evocar o que melhor descreve Gregório de Matos, o Boca do Inferno:

“A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro".

Durante a semana, visitávamos o tribunal para tratar de assuntos de trabalho do meu pai. Ali, também, algumas matérias e colunas da Folha chamavam a atenção dos adultos que debatiam incessantemente o primeiro governo FHC.

Depois percorríamos os cartórios e aproveitávamos para fazer um lanche na padaria antes de voltarmos caminhando para casa. Morar no centro tinha as suas vantagens —a maior delas era que raramente precisávamos de carro.

De volta à rotina do final de semana, depois de ouvir o meu pai ler as principais manchetes para a minha mãe, atravessávamos o cais do porto para tomar uma Coca-Cola e comer um sanduíche de queijo do reino no Bar do 28, onde os adultos encomendavam alguma bebida e, eu, muito sabiamente, enchia os bolsos de chiclete importado para, em seguida, manchar o jornal com as minhas mãos enlambuzadas de açúcar e maresia.

Nós, pernambucanos, assumimos o bairrismo de Cícero Dias e, assim, costumamos afirmar que o mundo começa em Recife. Há inclusive quem se arrisque em dizer que alguns dos antigos membros da sinagoga Kahal Zur Israel, em Recife —a primeira das Américas— foram responsáveis pela fundação de Nova York, quando, em verdade, constituíram a primeira congregação judaica dos Estados Unidos: Shearit Israel.

Em contrapartida, comenta-se que, na época colonial, quando alguém, entre os espanhóis, caía em desgraça, pesava a gozação: “Foi para Pernambuco!”.

Assim, se um dia eu pude vislumbrar o mundo a partir da minha cidade, foi somente porque durante esses passeios de final de semana trazíamos conosco uma cópia da Folha e, para explicar cada informação que encontrávamos no jornal, o meu pai buscava exemplos em tudo o que víamos nas ruas: “Sabe aquele punhado de chicletes? Contrabando!”.

Em “O Mundo de Ontem” (1941), o escritor Stefan Zweig relata a sua experiência de crescer em Viena, a frequentar os famosos cafés da cidade para acompanhar a leitura dos principais jornais europeus e americanos:

“O melhor lugar para aprender todas as novidades era o café [...]. Para compreender isso é preciso saber que o café, em Viena, representa uma instituição especial, sem comparação com nenhuma outra no mundo. Na verdade, é uma espécie de clube democrático, acessível a qualquer pessoa capaz de pagar por uma xícara de café, onde o freguês pode passar horas sentado, discutindo, lendo, jogando cartas, recebendo sua correspondência e, sobretudo consumindo um número ilimitado de jornais. Qualquer bom café vienense assinava todos os jornais e não só de Viena; mas também de toda a Alemanha, os franceses, os ingleses, os italianos, os americanos, além de todas as revistas literárias e importantes do mundo [...]. Assim, sabíamos em primeira mão tudo o que acontecia no mundo, de todo livro lançado no mercado, de cada apresentação, onde quer que fosse, e comparávamos as críticas em todos os jornais; talvez pouca coisa tenha contribuído tanto para a mobilidade intelectual e a orientação internacional dos austríacos como o fato de poder informar-se no café, de modo tão amplo, sobre os eventos do mundo; podendo logo discuti-los no circulo de amigos. Todos os dias, passávamos horas a fio ali, e nada nos escapava".

Acredito não possuirmos instituição semelhante em Pernambuco, talvez os nossos antigos bares do centro, quem sabe o Bar Savoy, frequentado durante décadas por intelectuais do Brasil e do mundo, tal como o sociólogo Gilberto Freyre, os artistas Roberto Burle-Marx e Francisco Brennand, os escritores Ariano Suassuna, Renato Carneiro Campos e Jorge Amado, havendo mesmo por lá passado os filósofos Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.

Isto sem contar o mais célebre de todos os frequentadores, o poeta Carlos Pena Filho, autor destes versos sobre o Savoy:

“São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados”.

Dentre os muitos anônimos figurados no poema, imagino o velhinho que me vendia livros de Agatha Christie no primeiro andar do extinto Sebo Brandão, na rua da Matriz, sempre a contar haver trocado abraços com toda essa gente ilustre.

Fato é que na adolescência, ao experimentar os meus primeiros sinais de vocação intelectual, a constelação do Savoy permanecia-me inatingível. Os passeios de domingo, também, embora importantes, já não bastavam.

Eu precisava de algo mais e, assim, o lugar mais democrático e mais aberto às descobertas do mundo através dos jornais —aquele lugar que, na minha imaginação ganhava às proporções de um café vienense, onde eu discutia toda espécie de notícias com os meus companheiros de geração— era a biblioteca da minha escola.

Lá tínhamos acesso a uma porção de periódicos, todos de uma só vez e de graça. Alguns disponibilizados pela diretoria, como o Jornal do Commercio, o Diário de Pernambuco, a Folha e o Estadão. Outros eram trazidos pelos próprios estudantes, aí então rolava de tudo, desde as revistas Mad, Bundas, Caros Amigos e até a Playboy.

Volta e meia alguém se enchia de importância e entrava em disputa —imagine só, você— a discutir sobre as pretensões ideológicas da mídia. Algo que, certamente, divertia o nosso amigo bibliotecário.

Éramos um grupo esquisitíssimo, alguns voltados à tecnologia, outros, poetas e músicos, cuja extravagância punha em xeque as teorias da psicóloga responsável pelo Serviço de Orientação Educacional.

Todos, no entanto, sonhávamos em escrever para a imprensa. Tanto é assim que chegamos a criar a nossa própria publicação. A empreitada durou pouco tempo, apenas uma edição. Mas, como foi gostoso ver pela primeira vez impresso o conjunto dos nossos esforços!

Nesta semana em que a Folha comemora o seu primeiro centenário, pergunto-me, portanto, quantas lembranças podem advir da leitura de um jornal?

Ora, há quem tenha um relacionamento pragmático com as informações e estude o noticiário como quem consulta a previsão do tempo. Eu, no entanto, festejo na leitura de cada manchete as oportunidades que ainda tenho de acompanhar os meus pais na leitura da Folha aos domingos, a compartilhar causos da minha época de escola e de um Recife que, hoje, talvez, só exista mesmo nas nossas recordações.

Aos meus colegas da Folha.

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