Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Temos que reaprender a lidar com o inesperado para desviar da armadilha da paralisia

Filósofo Franz Rosenzweig indica que perplexidade diante da vida só encontra resposta no próprio viver

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Em “A Carta de Lord Chandos” (1902), texto do escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal (1874-1929), Philip Chandos, o narrador, confessa a um amigo, no caso, o filósofo Francis Bacon, a razão pela qual resolvera abandonar a vida literária.

Logo na primeira parte desta carta imaginária, Chandos detalha uma série de sintomas a corroborar com o diagnóstico de paralisia mental que recebera do amigo. De início, ele relata não mais se identificar com o que escrevera, alegando existir um “abismo sem ponte, intransponível” entre os seus textos anteriores e qualquer coisa que ele poderia vir a produzir.

Em seguida, comenta a futilidade dos seus antigos projetos, nos quais pretendia decifrar mitologias e colecionar provérbios das mais variadas culturas, como se no mundo existisse unidade entre todas as coisas.

Retrato de homem de terno e bigode
Retrato de Hugo von Hofmannsthal em 1927 - Eduard Wasow/Wikimedia Commons

Por fim, descreve a sua condição de fraqueza, como se, embriagado, houvesse despencado da mais firme certeza intelectual para a mais extrema sensação de impotência e desespero:

“Meu caso, em poucas palavras, é este: perdi por completo a capacidade de pensar ou falar coerentemente sobre qualquer coisa [...]. As palavras abstratas, que naturalmente a língua precisa de usar para expressar qualquer ideia, se esfarinhavam na minha boca como cogumelos podres.”

Há quem interprete esse texto a partir da biografia do próprio Hofmannsthal, alegando que as palavras de Chandos coincidiriam com o que o autor escrevera sobre si mesmo ao poeta Stefan George (1868-1933). Por exemplo, em uma carta de 24 de julho de 1902, Hofmannsthal conta para George que, nos seus piores momentos, “até mesmo a clareza de pensamento é dolorosamente perdida”.

No entanto, apesar da sua relação com o momento de vida de Hofmannsthal, equivalendo, entre outras coisas, a uma virada na sua produção literária, a “Carta” é um testemunho dos esforços de uma geração em sua tentativa de compreender os limites da linguagem —tema abordado de modos distintos na obra de vários intelectuais da época, como Sigmund Freud, Fritz Mauthner e Ludwig Wittgenstein.

Assim, há, também, quem entenda a “Carta” como um reflexo, na cultura, do momento político pelo qual passava o Império Austro-Húngaro no começo do século 20, a expressar, por meio da crise da linguagem, uma ansiedade com relação à falência das instituições e dos valores que lhes serviam de arrimo:

“No princípio, tornou-se pouco a pouco impossível discorrer sobre um tema elevado ou geral com palavras que qualquer um usaria sem hesitar [...]. Contudo, pouco a pouco se foi estendendo essa aflição como ferrugem que a tudo corrói. As conversações familiares e cotidianas também se tornaram tão questionáveis, tão inquietantes e todos os juízos que se costumam expressar facilmente com a segurança de um sonâmbulo; que me vi forçado a abster-me de participar de tais conversações [...]. Tudo se desintegrava em pedaços e os pedaços em mais pedaços, e nada se deixava convergir para um único conceito”.

Ambas as interpretações nos auxiliam na compreensão do texto de Hofmannsthal. No entanto, eu gostaria de propor uma outra chave de leitura para a “Carta” a partir do diagnóstico de paralisia mental ao qual o narrador se refere no início do texto, pois tenho para mim que esse mesmo diagnóstico talvez possa nos ajudar a compreender muitas das nossas reações ante as crises políticas e institucionais da nossa época —quando, por exemplo, nos tornamos reféns de narrativas.

Em “O Livrinho da Saúde e da Doença do Senso Comum” (1922), Franz Rosenzweig, pensador judeu de origem alemã, que também escreveu a partir da experiência da crise da linguagem que antecedeu a Primeira Guerra, conta-nos a história de um filósofo que, finalmente, ao deparar-se com a impossibilidade de acessar a essência das coisas, acaba por tornar-se tal Chandos, uma espécie de paralítico da razão:

“O paciente [filósofo] teve que se meter na cama, subitamente já não podia levar a cabo nenhuma das ações necessárias da vida cotidiana. Sentia-se como afetado de paralisia. Encontrava-se acometido da rigidez do assombro. Não se sentia capaz de agarrar nada com as mãos —elas aguardavam uma justificativa para agir. Não se sentia capaz de andar —como as suas pernas poderiam ter certeza de que o chão é sólido? Seus olhos já não eram capazes de ver —como provar que tudo não passaria de um sonho? Seus ouvidos não eram capazes de escutar —a quem eles deveriam ouvir? Não mais era capaz de falar; não valia a pena jogar palavras ao vazio”.

Para Rosenzweig, o ser humano possui a capacidade de assombrar-se diante das coisas do mundo; como quem, do nada, surpreende-se ao encontrar pela primeira vez a pessoa amada. No entanto, tendemos à imobilidade do pensamento a partir do instante em que, ao pararmos para refletir, como o filósofo-paciente, buscamos destacar o objeto da nossa perplexidade do turbilhão das coisas que caracteriza o impiedoso fluxo da vida.

Ora, será mesmo possível entendermos os eventos e as coisas que nos afetam a partir de um ponto fixo atemporal, sem levar em consideração a sua profunda relação com a dinâmica do mundo?

Mas, atenção, em seu ensaio sobre o “Livrinho”, Hilary Putnam adverte-nos de que a filosofia à qual se refere Rosenzweig não é exatamente o conhecimento técnico especializado; significando, aqui, a tentação que todos nós partilhamos de substituir a vida pelo emprego dogmático das palavras.

Ora, ao submetermos a nossa reflexão às formulações de um sistema de pensamento, seja qual seja, com a intenção de tudo poder explicar a partir dos seus mais básicos pressupostos, corremos o risco, como bem observa Rosenzweig, de nos paralisarmos e, portanto, de transformar o objeto da nossa perplexidade em uma coisa que “o fluxo da vida foi substituído por algo submisso, escultural, subjugado.”

Mas, será que é possível superarmos tal paralisia? Rosenzweig diria que sim. No entanto, o processo de cura por ele proposto é lento e laborioso, sem com isso oferecer-nos qualquer garantia de sucesso. Este processo consistiria em reaprendermos a lidar com o inesperado, as tensões e a multiplicidade dos fenômenos que apenas pode ser vivenciada a partir da nossa experiência da vida ao longo do tempo.

O que explicaria o motivo pelo qual Rosenzweig faz referência a Goethe logo na epígrafe do “Livrinho”, ao mencionar os versos do poeta em “O Divã Ocidento-Oriental” (1819):

“Por que a verdade está na lonjura?
Escondida em tão grande fundura?”
-
Ninguém entende na hora certa! —
Se na hora certa entendesse,
a verdade estaria perto e aberta,
amável, como se esplandecesse.”

Para que a razão se reestabeleça e não mais corra o risco de cair em tais armadilhas, nós precisamos reaprender a lidar com a marca da contingência na experiência humana, principalmente com relação aos nossos próprios limites: “Ninguém entende na hora certa!”.

O que Rosenzweig tenta nos fazer perceber é que a perplexidade diante da vida somente encontra resposta no próprio viver. Dito isso, penso, talvez, que o maior sinal da reabilitação da razão estaria em buscarmos viver com aquela mesma coragem que Chandos parece atribuir ao seu ilustre interlocutor: “Com a graça e o humor dos grandes homens, que sabem nos ossos como a vida é perigosa, mas nem por isso se abatem".

Em tempo, deixo aqui uma sugestão de leitura para quem se interessar em conhecer um pouco mais sobre o pensamento de Franz Rosenzweig: o artigo “A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig”, de Maria Cristina Mariante Guarnieri.

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