Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

O que há de moderno na história bíblica de Sansão?

Narrativa do héroi evidencia que até a Bíblia deve instigar leitores a questionar conteúdo dos textos

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Na Bíblia, a história de Sansão —juiz de Israel, cuja força descomunal dependia da preservação dos votos de pureza do nazireu— apresenta-nos uma série de incógnitas, fazendo cada vez mais complexa a sua interpretação à medida que nos familiarizamos com os seus principais elementos e com o contexto em que a narrativa se insere.

Ao comentar Sansão em “Kingship of God” (1956), o filósofo Martin Buber destaca estranheza do texto. Outros estudiosos, ao exemplo de James L. Crenshaw, autor de “'Samson: a Secret Betrayed, a Vow Ignored” (1978), sugerem que a história protagonizada por esse herói bíblico não estaria devidamente encaixada no contexto canônico. Já o meu amigo Thiago Blumenthal —em “Ana e Sansão: Nação e Espiritualidade” (2020)— propõe a leitura de Sansão enquanto sátira.

Sansão lutando contra homens e mulheres ao seu redor
'Sansão capturado pelos filisteus' (1619), óleo sobre tela de Guercino (Giovanni Francesco Barbieri) - Metropolitan Museum of Art/Wikimedia Commons

Da minha mais recente leitura dessa história, o que mais me chamou a atenção não foram os detalhes que lhe denunciam singularidade no Livro dos Juízes, tampouco o comportamento de Sansão. Isto é, o fato de que, embora houvesse sido consagrado ao nazirato, o personagem aparenta agir de modo a subverter todas as regras, tal a proibição de beber vinho ou qualquer outra bebida forte, de consumir alimento impuro e de cortar o cabelo.

Em verdade, o que me despertou maior interesse pela história de Sansão foi a função do enigma que a narrativa encerra, fornecendo-nos uma espécie de explicação para as contradições da trama. Ressabido cumprir um enigma a proposta de se decalcar algo distinto sobre uma realidade, ao exemplo das adivinhações populares.

Na narrativa de Sansão, isto é patente quando do seu casamento com a filha de um filisteu, episódio em que ele desafia os seus convidados a decifrar a questão do mel encontrado na ossada do leão por ele secretamente abatido: “Do comedor saiu a comida e do forte saiu a doçura”.

Bem como ao final da sua história, quando o narrador comenta: “E foram mais os mortos que matou na sua morte do que os que havia matado na sua vida”. Permitindo-nos, segundo o estudioso Edward L. Greenstein —autor de “The Riddle of Samson” (1981)— confrontar toda a narrativa como uma espécie de quebra-cabeças.

Para mim, no entanto, que não sou especialista em assuntos bíblicos, a leitura e, consequentemente, a reflexão sobre a história de Sansão permite-nos adentrar uma discussão ainda mais ampla sobre o modo pelo qual nos relacionamos com os textos.

Na minha coluna mais recente, tratei de algumas questões pertinentes à leitura de escritores cujas atitudes polêmicas ou até mesmo sabidamente criminosas acabam por prejudicar a recepção de uma obra —podendo, inclusive, resultar em seu cancelamento.

Como se tivéssemos medo de que o contato com algo escrito por tais pessoas devesse seguir uma dinâmica de contágio, a fazer com que a leitura repercuta em nossas condutas e desejos reprimidos do mesmo modo que uma irremediável doença infecciosa se apodera de um corpo indefeso.

Mas até que ponto o papel de leitor nos colocaria em tal vulnerabilidade diante de uma obra, e o que será que isso quer dizer sobre a nossa relação com os livros? De que estes são usualmente reconhecidos como fontes de conhecimento e autoridade, já sabemos.

Isso não quer dizer que a nossa relação com os textos deva estar pautada em uma espécie de hierarquização entre a obra e o leitor, como se a autoridade de um texto e o conhecimento dos seus autores devessem necessariamente ocupar uma posição de inacessível superioridade, inibindo, desta maneira, toda e qualquer possibilidade de questionamento.

Ao longo dos séculos, sempre houve quem enxergasse a Bíblia desse modo, tomando o seu conteúdo por uma verdade incontestável, como se a autoridade conferida ao texto bíblico dispensasse qualquer interpretação, cabendo-nos apenas, enquanto leitores, aceitar ou não a sua verdade revelada. Isso foi criticado por Spinoza em capítulo do seu “Tratado Teológico-Político” (1670), que já foi assunto desta coluna.

No passado, esse modelo de relação com o texto e, mais especificamente, com as sagradas escrituras, serviu-nos de ferramenta para reconhecermos e procurarmos remediar o posicionamento moral de um leitor.

Hoje, embora esse modelo ainda seja implicitamente responsável por alimentar muitas das polêmicas literárias da nossa época, ele tornou-se obsoleto e, por isso mesmo, perigoso: operando em prejuízo da recepção de novas obras literárias, bem como da preservação de obras mais antigas, essenciais para a compreensão da nossa tradição cultural. Esse vem a ser o caso da própria Bíblia.

Assim, não raro encontro amigos ligados à atividade cultural que se orgulham de não possuir um exemplar da Bíblia em casa, como se a ruptura com a tradição e, consequentemente, com a autoridade por ela representada fosse uma evidência de adesão à modernidade.

No entanto, como ressalta o estudioso Robert Alter em “Canon & Creativity: Modern Writing and the Authority of Scripture” (2000), não somos propriamente modernos quando simplesmente nos excluímos de um diálogo com o passado.

Afinal, a modernidade opera uma tensão entre a novidade de um presente que se nos apresenta enquanto enigma e uma tradição que, embora já não seja capaz de solucionar todas as questões do presente, ainda assim oferece-nos um contexto a partir do qual nós podemos exercitar a nossa criatividade.

Retomo, portanto, à história de Sansão e ao que poderia haver de moderno em sua leitura. Não me refiro aqui, exatamente, ao percurso do protagonista nem à moral que poderia ser extraída a partir de um exame das suas ações, mas às exigências interpretativas impostas pela estrutura do texto —exigências, estas, características da maneira pela qual o conteúdo de um texto é articulado enquanto enigma.

A partir de Sansão, ficou claro para mim que, embora tenhamos receio de que a leitura de uma obra nos coloque em posição de vulnerabilidade perante a sua mensagem, o leitor, no exercício da sua autonomia, há de manter uma postura sempre ativa.

Ou seja, por mais tradicional e influente que seja um texto —ao exemplo da Bíblia— ele sempre há de instigar questionamentos capazes de nos fazer reavaliar o seu conteúdo e a pertinência do seu argumento. A lição de Sansão, portanto, é de que: literatura é enigma.

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